No caminho do BRT: as histórias por trás do legado da Rio 2016

Desde 2014, uma das obras consideradas como principal legado olímpico – a linha BRT Transcarioca – cruza o Rio de Janeiro, do Aeroporto Internacional Tom Jobim (Galeão), na Ilha do Governador, à Barra da Tijuca, principal palco da Rio 2016.

Por Camilla Costa, da BBC 

O sistema de ônibus rápidos é uma ampliação do percurso original previsto no Dossiê de Candidatura para os Jogos, passa por 27 bairros da cidade e causou impacto na vida de milhares de pessoas.

No caminho estão regiões tradicionais da zona norte da cidade, como a Penha, e favelas como a da Maré. E estão também comunidades que foram total ou parcialmente removidas para a construção tanto da Transcarioca como da linha Transolímpica – que liga os centros olímpicos da Barra e de Deodoro, mas que será de uso exclusivo de atletas, profissionais e turístas olímpicos até o fim de agosto.

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A BBC Brasil percorreu este traçado ouvindo as histórias dos cariocas afetados pelo novo sistema de transporte – tanto dentro dos veículos quanto às margens da linha. Confira algumas delas:

Parada Galeão – Tom Jobim 2

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Engraxate apertou mão de Usain Bolt, mas diz que movimento do aeroporto já foi maior que na Olimpíada

Na entrada do embarque do Galeão, Jackson Augusto de Melo, de 22 anos, engraxa sapatos há 13 e está acostumado a conhecer estrangeiros, celebridades e atletas. Por isso, a movimentação da Olimpíada não lhe impressiona – exceto pelo momento em que apertou a mão do velocista jamaicano Usain Bolt. “É bom porque está dando mais movimento, graças a Deus. Mas já teve maior.”

O BRT, no entanto, mudou sua ida para o trabalho desde o bairro de Bonsucesso (parada Maré), onde vive. “É bem mais rápido, foi uma melhoria pra nossa vida.”

Ele diz querer assistir os jogos de futebol olímpico, ou ao menos o masculino, mas não parece empolgado com o legado dos Jogos para a cidade.

“Pra mim não mudou nada. Acho que depois da Olimpíada, estão dizendo aí até que vai piorar.” Como? A reportagem pergunta. “Não sei nem te explicar.”

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Zelia foi até a Zona Sul para ver passagem da tocha em 2004, mas agora diz não ter tempo para acompanhar jogos

A potiguar Zelia Maria de Araújo, de 55 anos, é auxiliar de limpeza no Galeão desde 1993, quando o atual terminal 2, onde trabalha, nem existia. “Isso aqui era tudo mato”, diz.

Ela também vive em Bonsucesso, mas prefere não usar o BRT para ir ao trabalho. “Demora muito, a van passa mais rápido. Moro perto daqui, mas preciso pegar dois BRTs pra vir. Antes tinha um que vinha direto, mas tiraram há uns quatro meses, não sei por que.”

Do andar onde fica, no terminal 2 do aeroporto, consegue ouvir os gritos excitados dos turistas e atletas que chegam para a Rio 2016 -alguns já às voltas para entender como chegar a seus hoteis pelo transporte público. Mas o momento olímpico que a marcou foi a passagem da tocha pelo Brasil em 2004, antes dos Jogos em Atenas.

“Da outra vez que a tocha passou aqui eu estava lá em Botafogo às seis da manhã esperando ela passar. É uma emoção que é difícil explicar, mas você sente. É uma coisa diferente acontecendo no seu país, que costuma acontecer lá fora e a gente só acompanha pela televisão. Mas dessa vez não deu pra ver.”

“Agora não tenho curiosidade pela Olimpíada porque não tenho tempo. Eu chego tarde, vou fazer serviço de casa. Nem tenho tempo de ver TV. Bem que eu gostaria.”

Parada Madureira

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“Na Olimpíada é aquela coisa: a preocupação é maior com os turistas do que com a gente”, diz Thalita

Em meio a discussões entre passageiros e funcionários, rapazes tentando burlar as portas automáticas de vidro para entrar no veículo mais rápido e voluntários a caminho do Parque Olímpico, os universitários Daniel Mendes, de 20 anos, e Thalita Ferreira, de 21 anos, esperam o segundo ônibus rápido para chegar ao famoso Mercadão em Madureira.

“O BRT melhorou o trânsito, mas ainda tem o problema da superlotação. Vejo muitas pessoas reclamando que antes tinham mais linhas de ônibus e agora elas ficam dependentes do BRT. Em vez de desafogar as linhas que existiam, eles tiraram linhas e encheram o BRT. Talvez tenha algo bom aí [no legado da Olimpíada], mas agora só consigo ver pontos negativos para a cidade”, afirma Daniel.

“Para mim, é diferente. Antes, eu podia pegar um ônibus só da Colônia Juliano Moreira, onde moro, para Madureira. Agora ficou mais picotado do que antes. Se tiver trânsito, é mais rápido com o BRT. Mas se não tiver, ir de BRT demora mais. Os problemas sempre existiram, mas, na Olimpíada, tem aquela coisa: parece que a preocupação é maior com os turistas do que com a gente. A Zona Sul está sempre muito bem estruturada, mas a Zona Oeste não”, diz Thalita.

Nenhum dos dois tem vontade de acompanhar as competições.

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Considerada um dos principais legados olímpicos, linha vai de aeroporto a bairro nobre, cruzando subúrbios do Rio

Questionada pela BBC Brasil, a Secretaria Municipal de Transportes do Rio confirma que linhas de ônibus foram extintas ou tornaram-se alimentadoras das estações do BRT. Mas afirma que “os moradores da região não ficaram desassistidos de transporte público, ao contrário, têm à disposição um transporte mais rápido e confortável”.

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“Pra falar a real, eu não tô nem aí para a Olimpíada”, diz Thainá

Thainá Germana, de 20 anos, está desempregada. Ao menos três vezes por semana, ela leva a filha Julia, de 3 anos, ao Parque Madureira.

Inaugurada em 2012, o a área de lazer foi um dos mais celebrados legados dos Jogos na região norte e recebeu os anéis olímpicos doados por Londres, além de equipamentos esportivos como quadra de basquete e a segunda maior pista de skate do país, apta a receber competições.

Mesmo em um dia de semana, e com chuva, o local está cheio de adolescentes, pessoas praticando exercícios e famílias com crianças.

“Aqui, era só mato e casas. Agora, ficou mais valorizado, a área em que a gente mora ficou mais vista. E tem bastante espaço para as crianças brincarem, que não tinha antes”, diz Thainá.

Durante a Rio 2016, Madureira é um dos polos de programação cultural e terá shows, esportes e um telão transmitindo as competições. Mas depois dos jogos, frequentadores se perguntam como ficará a segurança no local.

“Por causa da Olimpíada, tem mais policiamento aqui. Antes, não tinha muito. Depois que o parque foi construído, o pessoal fala que os assaltos ficaram piores, que tem mais aqui dentro do parque do que fora.”

Perguntada sobre o ânimo para ver os jogos, Thainá, que chegou a ser jogadora semiprofissional de futebol, desabafou: “Pra falar a real, eu não tô nem aí para a Olimpíada. Mas, se eu não estiver fazendo nada, de repente posso vir aqui e assistir.”

“Já me interessei pela Olimpíada, mas não me interesso mais, porque o mundo está horrível. E o povo só quer saber de Olimpíada, não está nem aí para os hospitais.”

Parada Ipase

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Rapper teve projeto social desmontado após remoção por causa do BRT

Cruzamos com o rapper e grafiteiro Gil Metralha, de 30 anos, diante de um muro grafitado que dizia “R$ para a Olimpíada tem de montão, para a saúde não”. O muro recebe os passageiros que descem do BRT na estação Ipase, no meio de uma avenida de comércio movimentada do bairro de Praça Seca, zona oeste do Rio.

Montado na bicicleta equipada com caixas de som que tocavam suas músicas, Gil explicou que morava na esquina daquele quarteirão, de onde foi removido para dar espaço à nova linha .

“Em 2013, derrubaram minha casa. Deram uma compensação, mas a casa valia mais. Comprei um apartamentinho no Recreio (dos Bandeirantes), mas quero voltar para cá”, diz.

“Eu tinha um projeto social no terraço da minha casa, que fiz por conta própria. Construí uma pista e dez skates. Os meninos que tiravam notas boas na escola podiam andar comigo, mas tinham que me mostrar o boletim. Conheço todos esses meninos aqui que você está vendo. Mas o projeto só durou um ano. O BRT passou, terminou tudo.”

Mesmo assim, o rapper acredita que a Olimpíada pode trazer coisas positivas à cidade. “Para mim não significou quase nada, mas não posso ser egoísta. Pode influenciar crianças a praticar esportes. Já está influenciando.”

Parada Taquara

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Para Isabel, remoção por causa do BRT da olimpíada significou dívida-surpresa de R$ 75 mil

Enquanto a parada do BRT Transolímpica não fica disponível próximo ao seu condomínio em Colônia Juliano Moreira, a costureira baiana Isabel Ribeiro, de 57 anos, precisa pegar uma van até a parada Taquara, do BRT Transcarioca, para ter acesso ao transporte público.

Hoje em dia, no entanto, ela sai pouco de casa, já que não tem dinheiro para o transporte.

Isabel vivia na ocupação de uma antiga fábrica de lenços na rua Ipadu, no bairro de Jacarepaguá. O local foi demolido para as obras da nova linha. Como a maioria dos antigos vizinhos, ela recebeu um apartamento do programa ‘Minha Casa, Minha Vida’ no bairro próximo, mas, agora, recebeu também um problema.

Sem receber da prefeitura o valor dos apartamentos, o Banco do Brasil, agente financeiro da obra, têm cobrado dos moradores uma dívida de R$ 75 mil.

O imbróglio a fez perder o emprego, infartar algumas vezes e ter seu nome sujo, o que a impede de conseguir aposentadoria pelo INSS para fazer uma cirurgia cardíaca.

“Eu vivia em um galpão numa casa arrumadinha, mas onde as telhas já caíam com a chuva e o esgoto transbordava. Quando peguei a chave desse apartamento, eu chorei muito porque pedia a Deus para ter um cantinho. Mas eu não sei se isso aqui é meu, filha”, diz.

“Eu assinei um documento com o Banco do Brasil e não recebi um contrato. Recebo cartas de cobrança, mensagens de celular, telefonemas, mas não tenho resposta da prefeitura. Podem me dar uma ordem de despejo. Tenho muito medo.”

Apesar da mudança de moradia, que diz ter sido para melhor, Isabel se recente do legado olímpico.

“Pra mim a Olimpíada não significa nada. Essa Transolímpica só veio para acabar com minha vida, porque se não fosse essa maldita linha eu não estava passando por isso. Está tudo bloqueado: meu CPF, meu CNPJ. Eu nunca devi nada a ninguém”, afirma.

“Comparando com onde eu morava, isso aqui é como estar morando na Barra. É um patrimônio maravilhoso, mas acabou com nossa vida.”

Procurada pela BBC Brasil, a Secretaria de Municipal de Habitação e Cidadania do Rio (SMHC) afirmou que “o processo de registro dos contratos dos imóveis do Minha Casa, Minha Vida está em andamento”. “Os contratos serão entregues aos moradores após a conclusão desse processo”, diz.

Alguns moradores estão há quase dois anos no apartamento sem tenham recebido o documento.

A secretaria disse ainda que “já está regularizando o pagamento” de todas as parcelas dos apartamentos junto ao Banco do Brasil. Mas não deu prazos para que a dívida seja quitada.

“Sempre que toma ciência de reclamações de moradores, a SMHC emite ofícios solicitando ao banco que cesse as notificações (de cobrança)”, afirmou o órgão.

Nos últimos dias, no entanto, Isabel continuou a receber mensagens de sobre a dívida.

O Banco do Brasil afirmou, por e-mail, que “efetua a cobrança ativa das parcelas em atraso por meio de seus canais de cobrança”.

“Para que a situação seja regularizada, aguardamos da Prefeitura do Rio de Janeiro, a efetivação dos pagamentos prometidos aos beneficiários contemplados”.

Parada Curicica

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“Estou procurando competições gratuitas para ir”, diz ex-atleta que teve loja removida para passagem de BRT olímpico

Para a comerciante Ana Thelly Nascimento da Silva, de 30 anos, a remoção foi menos controversa do que a de outros moradores de sua região, na Vila União, em Curicica. Entre as linhas Transcarioca e Transolímpica, ela teve seu brechó de móveis removido para um local próximo por causa da nova linha.

Agora, o brechó fica diante de um amontoado de pequenas casas de dois andares, espremidos ao lado do viaduto por onde passará o BRT, ainda em obras.

No último mês, Ana teve o novo local de trabalho interditado para que fossem feitos reparos na construção. A reportagem a encontrou no momento em que recebia autorização para voltar.

“O pessoal da empresa que faz a obra me pediu para fazer um cálculo do quanto eu faturaria, para me reembolsarem. E fizeram a mesma coisa com as pessoas que moram aqui: alugaram apartamentos mobiliados para que eles ficassem. Mas tudo foi tranquilo. Não teve danificação nas paredes, não teve nada”, diz.

Ex-atleta, ela diz que seu trajeto de casa para o trabalho ficou mais longo com o BRT, já que a linha de ônibus que a levava diretamente de um local a outro foi extinta. Mesmo assim, acredita que o legado para a cidade pode ser positivo.

“Sou muito patriota. Problemas acontecem em tudo o que a gente vai fazer, mas a olimpíada é uma coisa boa para todo mundo, não só para os atletas. E tudo tem um sacrifício. Algumas coisas vão dar errado, mas muita coisa vai ser muito boa. Com essas obras grandes vai ter menos trânsito no Rio de Janeiro”, afirma.

Parada Terminal Alvorada – Final do trajeto

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Sueli diz que faturamento aumentou com ampliação do BRT

No fim da manhã, o Terminal Alvorada, ampliado e reinaugurado em 2013, está repleto de soldados da Força Nacional, funcionários de hoteis e shoppings da Barra, voluntários e turistas chegando do Galeão ou saindo de seus hoteis rumo às praias da zona sul.

Sueli Silva Santos, de 45 anos, trabalha há pouco mais de um ano em uma banca de revistas no terminal – que fica cinco paradas após o Parque Olímpico. “Aqui é bem mais movimentado. O faturamento da banca aumentou e meu salário também. Não vejo ninguém reclamar do BRT, não”, afirma.

“Estou gostando da Olimpíada. De vez quando ajudo uns estrangeiros. Eles chegam pedindo as coisas e eu não entendo nada, mas desenrolo tudo. Estava louca para assistir os Jogos, se tivesse uma televisão aqui (na banca). Se pudesse, eu via tudo.”

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Aldair diz que obras o ajudaram a conseguir emprego e “esquentar carteira”

O cabeleireiro Aldair José, de 44 anos, chegou ao final chegou ao final da Transcarioca vindo da Penha, na zona norte – um trajeto de cerca de três horas que hoje faz em menos de 1h30.

“Para mim o BRT mudou bastante, a princípio para o bem. Já me ajudou com emprego. Eu estava desempregado e acabei trabalhando na construção da via, como operador de trânsito, por 11 meses. Deu uma esquentada na minha carteira, que andava fria. Também me ajudou porque estou vindo aqui começar em outro emprego temporário, pelo período olímpico”, diz.

“Acho que a Olimpíada é legal para o mundo e para o Rio. Gera turismo, dinheiro, emprego. Mas tem o outro lado, que fica esquecido, que é a saúde e a segurança aqui. Isso está terrível. Vão arrecadar muito dinheiro, mas pensamos sobre se esse dinheiro vai ser investido no Rio depois. Espero que seja.”

*Esta reportagem foi atualizada às 21h17 do dia 08 de agosto, para acrescentar a resposta da prefeitura do Rio sobre a situação dos moradores de Colônia Juliano Moreira.

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