Para diretor da Anistia Internacional, aumento da violência do Estado mostra que a sociedade dá carta branca à guerra contra jovens nas favelas
Treinamento de policiais militares para a implantação da UPP em Nova Brasília, comunidade do Rio
O aumento de 103% no número de mortes causadas pela polícia na cidade do Rio de Janeiro de abril a junho, em comparação ao mesmo período de 2015, é um indicativo preocupante. Os números trazidos pela Anistia Internacional, com base em pesquisa do Instituto de Segurança Pública estadual, mostram que o maior legado dos Jogos Olímpicos, envoltos em polêmicas, falta de planejamento e violações de direitos humanos, é “o aprofundamento de um modelo militarizado de segurança pública”.
O diagnóstico é do diretor executivo da Anistia Internacional, Átila Roque. Em entrevista aCartaCapital, ele lembra que a polícia matou 35 pessoas em abril, 40 em maio e 49 em junho no Rio, totalizando 124 vítimas em 90 dias. Um padrão que parece repetir o cenário de Copa do Mundo, quando se verificou um aumento de 40% do número de homicídios cometidos pela polícia.
Roque observa, no entanto, tentativas de implantar uma ação menos ostensiva e mais incorporada a um conjunto de outras políticas públicas fracassadas, que hoje vitimam não apenas a habitual população jovem e negra das favelas, como toda a sociedade. “O projeto das UPPs, por exemplo, foi tragado pela lógica tradicional do confronto, e elas se tornaram ilhas isoladas no âmbito de uma corporação que não foi capaz de internalizar uma nova cultura”, diz.
“Hoje os maiores prejudicados são as comunidades afetadas pela ação do Estado, mas também o policial cuja identidade é vinculada a uma politica violadora de direitos, e a sociedade, que admite a barbárie e aceita que há pessoas matáveis, alguns mais descartáveis que outros. É um jogo onde todo mundo perde.”
Leia os principais trechos da entrevista:
CartaCapital – A cidade do Rio de Janeiro registrou um aumento expressivo no número de mortes causadas pela polícia entre abril e junho de 2016. Foram 124 mortes no período, o que representa mais de uma por dia. A que se deve esse crescimento da violência praticada pelo Estado e de que maneira esses números podem ser relacionados aos Jogos Olímpicos?
Átila Roque – Infelizmente, a resposta é simples: existe uma relação direta entre o aumento das operações policiais e os megaeventos esportivos nos últimos dez anos no Rio. Esse é o grande déficit em relação ao legado da Olimpíada e de outros eventos desse porte na cidade.
O principal legado dos Jogos Olímpicos será o aprofundamento do modelo militarizado de segurança pública, focado em uma ideia de guerra ao crime e combate ao tráfico.
Esse modelo reforça o que o Brasil tem de pior no que diz respeito ao modelo de policiamento. Ao não ser revisto, como era a promessa para os Jogos, ele acaba aprofundando o número de mortes.
Nos meses que antecedem esses grandes eventos, a única resposta no campo da segurança pública oferecida pelo poder público é mais do mesmo, ou seja, guerra. Significa aumentar o número de operações policiais nos territórios de favelas e periferias e focar a repressão em um certo perfil de pessoa: jovem, negro e residente da favela.
Esse é um modelo que historicamente resulta em morte, no aumento das chamadas execuções extrajudiciais, quando um agente do Estado mata um suspeito sem nenhuma razão, fazendo uso abusivo da força letal.
CC – Qual o resultado disso?
AR – Quando você aumenta esse mais do mesmo, o número de operações militarizadas nos territórios de periferia traz o resultado que estamos vendo: entre abril e junho deste ano tivemos um aumento de mais de 103% no número de homicídios cometidos pelas mãos da polícia, quando se compara com 2015.
Em abril, a polícia matou 35 pessoas na cidade do Rio, 40 em maio e 49 em junho. Esse padrão repete o que aconteceu em 2014, durante a Copa do Mundo, quando verificamos um aumento de 40% do numero de homicídios cometidos pela polícia.
O fato de o Estado se concentrar em dar uma resposta meramente repressiva e demagógica à preocupação legítima da sociedade por mais segurança resulta na criminalização de áreas inteiras da cidade, que são tratadas como territórios inimigos, um aumento das mortes dos residentes jovens e de policiais que morrem em confronto, e operações que têm um grau muito baixo de eficiência.
Um caminho que não oferece nenhuma eficácia no combate efetivo ao crime organizado nem à violência, quando a resposta deve ser uma política de segurança que combine inteligência e uso gradual da força em vez de, simplesmente, a clássica resposta das operações militares repressivas.
CC – Qual seria a política de segurança pública ideal?
AR – Uma política de segurança focada na inteligência abrange um universo muito mais amplo, usa a força letal em última instância, como derradeiro recurso para a defesa da vida do policial ou de outra pessoa. Mas hoje temos uma resposta genérica, não focada, que leva à criminalização de territórios inteiros e uso da força excessiva por conta das operações, incursões altamente militarizadas com armamento de guerra em áreas densamente povoadas, como se fizessem varredura em uma terra arrasada.
Isso não traz outro cenário se não a produção de mais mortes desnecessárias e baixíssima eficácia do ponto de vista do combate ao crime.
Para Roque, polícia precisava de mais inteligência para ancorar suas operações (Foto: AF Rodrigues)
CC – Com a Olímpiada deste ano o Rio tinha a oportunidade de melhorar suas instituições e política de segurança pública, mas acabou perdendo-a?
AR – Oportunidade sempre tivemos. O Rio de Janeiro é um estado rico, com recursos e inteligência na área.
Temos um acúmulo importante de estudos e pesquisas capazes de mostrar com bastante rigor como essa política de confronto e guerra não obtém resultados efetivos na questão da segurança e só leva a um aumento dos mortos.
Tivemos, inclusive, ao longo dos últimos dez anos, tentativas de reverter essa lógica dentro da própria polícia.
A ideia original que inspirou as UPPs, por exemplo, de uma polícia de proximidade, mais comunitária e apoiada pelo trabalho de inteligência, além de outras políticas públicas, buscava romper com a lógica do confronto.
O objetivo principal não era a guerra, mas a presença do Estado naquela comunidade que ia além da polícia. O projeto das UPPs, por exemplo, foi tragado pela lógica tradicional do confronto, e elas se tornaram ilhas isoladas no âmbito de uma corporação que não foi capaz de internalizar uma nova cultura.
Segurança pública não é um problema somente da polícia, e precisa ser um problema do Estado. É preciso cuidar disso com o mesmo carinho e dedicação com que deveria se cuidar da saúde e educação, com foco em politicas integradas para desenvolvimento social e respeito ao cidadão.
CC – De que maneira o fracasso das UPPs contribuiu para o agravamento desse quadro?
AR – A falência do modelo é parte de um quadro mais amplo de falta de priorização da reforma efetiva e verdadeira de uma doutrina de segurança pública do Estado como um todo. Não se trata apenas da polícia, mas um conjunto das instituições tendo o Estado firmando um pacto a favor da segurança que garanta direitos e não os viole.
Mas é preciso vontade politica e apoio para implementar um conjunto de medidas que permita à polícia atuar de certa maneira, além da criação de instrumentos de valorização para esse novo modo de atuar. O policial precisa sentir que tem incentivo para agir de outra maneira e tem de ser valorizado por isso. Ao mesmo tempo, são necessários instrumentos de transparência e de controle externo à polícia.
Hoje existe uma enorme sombra de dúvida sobre essas ações, o que no limite prejudica a própria força de segurança. Hoje os maiores prejudicados são as comunidades afetadas pela ação do Estado, mas também o policial cuja identidade é vinculada a uma politica violadora de direitos e a sociedade, que admite a barbárie e aceita que há pessoas matáveis, alguns mais descartáveis que outros. É um jogo onde todo mundo perde.
CC – O cenário que vemos hoje é uma repetição do que viveu o Rio na Copa do Mundo em 2014 ou mesmo nos Jogos Panamericanos de 2007?
AR – O alerta que fizemos no início do ano, de que as Olimpíadas e megaeventos esportivos aumentavam muito o risco de violação de direitos humanos no campo da segurança pública, acabou se confirmando.
Estamos de novo vendo a repetição do que ocorreu na Copa e no Pan, quando as favelas experimentaram a presença da Força Nacional e dos militares. A memoria é curta, mas o Pan produziu uma das maiores chacinas recentes do Rio. A Chacina do Pan resultou em 19 mortos no Alemão. E investigações posteriores mostraram que a maior parte deles foram vítimas de execuções sumárias.
Desde então o que vemos com a proximidade desses eventos esportivos é o uso desproporcional da força e do aprofundamento desse modelo falido do policiamento orientado apenas para a repressão, combate e guerra.
Esses policiais atuam em nosso nome, têm o monopólio da força. Não é admissível que a gente conviva com tanta conformidade em relação a números tão absurdos, como o de que nos últimos três meses a polícia matou mais de uma pessoa por dia no Rio, e isso nem sequer é objeto de investigação.
Por muito menos, nos Estados Unidos as pessoas vão às ruas protestar. Já passou da hora de o Estado brasileiro e de a sociedade se envergonharem por ter em suas mãos tanto sangue de vítimas da violência. Nós, enquanto sociedade, estamos dando carta branca a uma política de guerra às populações jovens e negras da favela.