No mês da Consciência Negra, Cavalcante (GO) realiza Festa Afro-Literária

Encontro virtual e gratuito reúne artistas, escritoras e escritores negros e dissemina cultura Kalunga

FONTEPor Luria Rezende Freire, enviado ao Portal Geledés
Foto: Divulgação

De um encontro fortuito na praça de Cavalcante (GO) nasceu uma proposta inovadora em formato e conteúdo, a Festa Afro-Literária. Com caráter emancipador e amplificador dos diálogos sobre a escrita negra, será realizada de 3 a 7 de novembro, em versão totalmente on-line, mas sem perder as raízes fincadas na comunidade quilombola dos Kalungas. O evento reúne grandes nomes do cenário literário e artístico negro como Elisa Lucinda, Ryane Leão, Luedji Luna, Ellen Oléria, além de representantes locais, como Bia Kalunga, Malu Martins e Wanderléia Kalunga. Para assistir à programação, basta se inscrever no canal da festa no Youtube.

Com a narrativa Literatura Quilombola: entre a tradição e o afrofuturismo, a festa conta com oficinas, rodas de conversa e apresentações artísticas. Fazem parte da programação: curso de formação de público, de escrita, estudos percussivos enquanto linguagem e lançamento de publicações independentes. Sempre com o objetivo de estimular a troca e compartilhamento de saberes com as comunidades locais de Cavalcante.

Calila das Mercês, escritora, doutora em Literatura e uma das coordenadoras da Festa, destaca a necessidade de estabelecer diálogos no meio da Literatura Negra. “Percebemos as pontes e as diferenças que temos em todos os espaços que transitamos, e que existe uma necessidade aqui no centro-oeste de dialogarmos com mais ênfase sobre a arte literária negra, já que é um dos pilares de construção social de imaginários. Queremos refletir sobre a tradição e o afrofuturismo, considerando as literaturas quilombolas e negras plurais, e promovendo encontros, partilhas de e entre artistas e pesquisadoras/es negres dos tantos brasis existentes”, diz.

Para Edymara Diniz, nascida e criada em Cavalcante, mestre em Artes Cênicas e também idealizadora do evento, a Festa nasceu com o intuito de ampliar o conhecimento da comunidade local e dos quilombolas Kalungas do município de Cavalcante. “Queremos possibilitar o acesso das pessoas desse quilombo às diversas literaturas negras e outras referências de artistas negros engajados nessa área de conhecimento”, explica.

Edymara e Calila se conheceram em um evento realizado por Edymara na cidade de Cavalcante, a Mostra de Teatro Afro Cena. Depois de discutirem interesses e visões comuns no sentido de visibilizar discursos e ideias, pensaram na Festa Afro-Literária, um evento que propõe uma interlocução horizontal entre autores consagrados nacionalmente e pessoas da comunidade de Cavalcante, sempre com o objetivo de destacar e amplificar a produção cultural negra. As duas assinam a idealização, curadoria e realização do evento.

“Propostas como essa inserem mais uma possibilidade de ampliação de espaços de diálogos e escuta, em que as pessoas negras tenham o protagonismo devido em vez de figurarem a exceção que confirma a regra. Na maioria dos eventos literários não estamos presentes em quantidade proporcional da representação da sociedade brasileira”, completa Calila.

Uma das iniciativas que já saiu do papel foi a seleção de 15 jovens da comunidade local para capacitação em um minicurso em Produção Cultural, ministrado por Edymara Diniz com participação de Bárbara Barbosa, especialista em acessibilidade cultural. Os jovens ganharam bolsas e certificação. “A proposta é que a comunidade quilombola local se aproprie dos meios de produção do evento, tanto a seleção de estagiários como a realização do minicurso em produção cultural visam a formação de multiplicadores em produção cultural e do evento.”

O QUE ESPERAR DA FESTA?

Entre os temas das rodas de conversa estão “Infância e Literatura: o papel das referências negras na construção das identidades da primeira infância”, com Cássia Vale, Cristiane Sobral, Ayana Sobral (mediação Wanderléia Kalunga); “Vozes negras na Literatura: recitar é viver”, com Denise Correia e Fábio Santana (mediação: Malu Martins); “Entre vãos e rios das escritoras quilombolas: pluralidade de vozes-mulheres”, com Nilça Kalunga e Eurotildes dos Santos Rosa (mediação: Victor Hugo).
Já na parte educativa, o evento oferece oficinas em tempo real, pela plataforma Zoom, como “Escrevivências artesanais”, com Tatiana Nascimento; “Movimentos negros no Goiás”, com Janira Sodré e “Escrita criativa”, com Cristiane Sobral.

A programação diversificada e a presença de diversas abordagens artísticas e literárias fazem da Festa Afro-Literária um evento único em formato e proposta, mas que carrega a intenção de discutir questões universais e pluriversais. “A formulação de imaginários sociais perpassa a ambiência da literatura, da mídia, e isto influência nas abordagens e vivências cotidianas. Observar quem faz as críticas literárias, as grandes editoras do país, as pesquisas acadêmicas legitimadas… Oferecer debates e estudos sobre e de negritudes para o viés literário é mais um compromisso de combater o projeto de embranquecimento dos espaços político-sociais, as tentativas de objetificação e de redução das epistemes negras em relação ao que foi e ainda é imposto como norma”, ressalta Calila das Mercês.

O projeto da Festa Afro-Literária foi aprovado nos editais do Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás de 2018. Toda a programação é gratuita e conta com tradução e interpretação em libras realizada pelas intérpretes, Bárbara Barbosa e Daniela Salazar.

COMUNIDADE KALUNGA

Pouca gente sabe, mas boa parte do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros fica localizada em Cavalcante (GO). Detentor de incontáveis belezas, com fauna e flora diversificada, o Parque Nacional se destaca nas terras dos quilombolas Kalungas por suas águas cristalinas, como as da Cachoeiras de Santa Bárbara, da Capivara ou do Rio da Prata. São mais de 100 cachoeiras em torno da cidade.

Criado em 1961 e com predominância do bioma Cerrado, o parque é também uma área conhecida por sua riqueza cultural e histórica. É habitat de espécies como o lobo-guará, jaguatirica e onça-pintada. E é morada dos povos Kalunga há mais de 300 anos.

A população Kalunga é formada por descendentes dos primeiros quilombolas e de pessoas que se instalaram há muito tempo atrás na região da Chapada dos Veadeiros, no norte de Goiás. Toda a área que ocupam foi reconhecida oficialmente pelo governo do Estado de Goiás como Sítio Histórico que abriga o Património Cultural Kalunga, parte essencial do património histórico e cultural brasileiro.

“Realizar um evento com a temática afro-brasileira a partir de Cavalcante é um convite para refletirmos sobre a luta e a resistência do povo quilombola e da negritude possibilitando o acesso da comunidade local a referências de artistas que são referência de luta e militância por direitos e ao mesmo tempo possibilitar que os olhares de outras pessoas se voltem para cá para que possamos refletir a necessidade que ainda temos de melhorar muitas demandas sociais em vários aspectos que envolvem educação, cultura, saúde, acessibilidade”, destaca Edymara Diniz.

Preservação de cultura ancestral e cultivo de agricultura familiar são motivos que garantem à comunidade quilombola Kalunga o mérito de maior quilombo remanescente do Brasil. Além disso, o Quilombo Kalunga foi reconhecido, em fevereiro deste ano, pela ONU, como o primeiro território conservado pela comunidade no Brasil. O título internacional TICCA (Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais) do Brasil é concedido a povos que garantem a proteção da natureza e bem-estar da sua população.

Situado entre as cidades de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre de Goiás, o remanescente abrange um território de 261 mil hectares e é formado por 39 comunidades que praticam agricultura baseada no conhecimento ancestral, que dispensa uso de agrotóxicos, tornando muito baixa a emissão de carbono na região.

SUSSA

Os Kalungas passaram a viver em um certo isolamento e acabaram construindo uma identidade e uma cultura próprias, com forte presença de elementos africanos. Além da agricultura familiar, preservação da cultura ancestral e forte conexão com a natureza, os Kalungas têm muitos hábitos e costumes mantidos há séculos. A dança Sussa é um deles. De origem africana, a Sussa é considerada sagrada pelo povo Kalunga.
Ao som do canto de homens e mulheres, no ritmo de instrumentos de percussão, a dança flui como folia tradicional, realizada em cerimônias religiosas e momentos de recreação, passada de geração em geração há mais de 300 anos.

Vestidas de saias de chita, as mulheres dançam com movimentos giratórios em que as saias se abrem e rodam num espetáculo hipnotizante. A chita e suas flores foram parte da inspiração para criarmos a paleta de cores e a logo da Festa Afro-Literária, que tem também o Cerrado e a literatura negra como ponto de partida.

Na Festa Afro-Literária, o grupo de Dança Sussa Flores e Frutos do Quilombo Kalunga se apresentará no dia 06 de novembro, às 21h20.

SERVIÇO:
Festa Afro-Literária
De 3 a 7 de novembro de 2021
Classificação: livre
Link do Youtube: https://bit.ly/festaafroliteraria
Acesse a programação completa: www.linktr.ee/afroliterariacvc

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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