Noite sobre Alcântara: Os quilombolas e a lógica do racismo institucional

Em 1978, o prestigiado romancista maranhense Josué Montello publicou seu famoso livro “Noite sobre Alcântara”, em que narra a derrocada econômica da cidade. Embora sem ser o objetivo principal do livro, Montello acaba por narrar a “fuga dos brancos”, que, ao fugirem, abandonaram os negros escravizados à própria sorte*. Esse episódio ajudou Alcântara a se transformar no município com a maior quantidade de comunidades quilombolas do Brasil. Dois anos depois da publicação, uma outra noite longa se iniciava sobre Alcântara: a publicação do decreto desapropriatório nº 7.820 de 1980, que declarou como sendo interesse público 52 mil hectares de terra aos militares, sob a justificativa de que o município configurava vazio demográfico. Não satisfeitos, os militares usaram de lobby e influência política para ampliar em mais 10 mil hectares, por meio de outro decreto sem número na década de 1990, feito pelo então presidente Fernando Collor de Melo.

A atitude do governo brasileiro acabou privando os quilombolas alcantarenses de poderem até mesmo se relacionar com seus locais sagrados, cultuarem e zelarem seus ancestrais, devido ao deslocamento compulsório de 1986-8 de 312 famílias de 31 povoados para 7 agrovilas. O governo ainda usou de outro decreto (92.571), para reduzir o módulo agrícola de Alcântara de 35 para 15 hectares. Ora, se Alcântara era um vazio demográfico, não haveria motivos para tal redução.

Em 10 anos, o Estado brasileiro usurpou cerca de 56% das terras do Município de Alcântara, sendo que 100% desse território ocupado pelos militares, já estava sob controle absoluto e inconteste de famílias quilombolas alcantarenses há quase dois séculos.

Muito embora não tenha havido mais deslocamentos compulsórios após os ocorridos nos anos de 1980, os quilombolas alcantarenses vivem sob constante ameaças de serem expulsos de seu território. Aliás, o fantasma da expulsão que ronda o território quilombola é uma estratégia do Estado brasileiro usada premeditadamente para aterrorizar os moradores das comunidades — uma vez que, a ameaça de expulsão das comunidades em nome do “progresso, do desenvolvimento” tem sido uma tônica recorrente tanto nos ditos governos de esquerdas e que parece caminhar para uma radicalização no atual (des)governo.

O principal desafio em Alcântara e o imbróglio territorial uma vez que, já passamos por sucessivos governos, de direita e progressistas, no entanto, em todos eles prevaleceu a pressão e o interesse militar em detrimento dos direitos das comunidades. Assim, o Estado nunca titulou nossos territórios. Nesses quarentas anos do imbróglio territorial, até chegamos perto de uma resolução e acabamos por amargar mais uma decepção já que o processo de regularização parou em 2008, na mesa do então presidente Lula. Agora estamos à beira da repetição de uma tragédia. Podemos ter que sair de nossas terras para dar lugar aos americanos. O que justifica sermos violados de forma tão vil, pela esquerda e pela direta? Senão o racismo estrutural e institucional! Em nosso caso, não há meias palavras ou meio termos.

Em 2008, por exemplo, o governo brasileiro autorizou a empresa binacional Alcântara Cyclone Space – ACS, a invadir parte do território quilombola com vista a construir uma plataforma de lançamentos de foguetes em plena área de roça das comunidades de Baracatatiua e Mamuna. A invasão só foi contida graças ao processo de resistência da comunidade de Mamuna, que bloqueou os acessos dos trabalhadores das empresas terceirizadas contratada pela ACS às máquinas. O diálogo com o Estado se deu na esfera judicial onde foi firmado um acordo transitado e julgado, em que o Estado brasileiro se compromete em não promover novos deslocamentos e que determina que toda e qualquer edificação relativa ao projeto espacial tem que ser construída nas muitas áreas ociosas dentro da atual área onde fica o centro de lançamento.

Depois que Bolsonaro ocupou o cargo presidencial, as comunidades quilombolas de Alcântara começaram a sofrer uma ofensiva mais forte. Devido aos planos do governo para a Base de Lançamento de Alcântara tornar-se um tipo de símbolo de um novo relacionamento entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos, foi assinado o Acordo de Salvaguarda Tecnologia (AST) em Washington em março de 2019. Ao mesmo tempo que garantiu a possibilidade aos americanos de “realizarem o desejo” se estabelecerem em Alcântara em território quilombola, o acordo se constitui em ameaça à segurança territorial das comunidades quilombolas. Isso porque, para atender as exigências americanas, o Brasil se “comprometeu” em avançar sobre mais 12 mil hectares do território das comunidades quilombolas.

O Estado brasileiro ignorou o fato das nossas comunidades terem se mobilizado e elaborado um Documento Base do Protocolo Comunitário sobre Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado, que delibera sobre os termos do procedimento do processo de consulta que desejamos que seja estabelecido pelo Estado. O documento foi devidamente protocolado nas diversas instâncias estatais que julgamos aptas a conduzir o processo de consulta.

Como resposta, o Estado brasileiro publicou por meio do Gabinete de Segurança Institucional a Resolução n. 11 que nos pareceu mais um ato belicoso contra as nossas comunidades com objetivo de expropriar nosso território. Mas é preciso lembrar ao Estado brasileiro duas coisas: primeiro é que nós não somos os inimigos, talvez os inimigos estejam sendo trazidos pelo próprio Estado para dentro do nosso território; segundo, seja na “arte da guerra” ou na vida real, as batalhas devem ser travadas respeitando o oponente, ou do contrário a “vitória” não faz nenhum sentido. É necessário lembrar também que em tempos excepcionais, como o que vivemos atualmente, “trégua” é mais do que uma necessidade, porque pode significar a sobrevivência de ambos os oponentes, além de ser, uma atitude nobre que demonstra grandeza em qualquer disputa.

Por essa razão é que perguntamos: Que tipo de ser humano se aproveita de um momento tão delicado como esse que a humanidade está vivendo, em que as atenções da sociedade brasileira, assim como a da mídia, estão voltadas para a crise da Covid-19? Para sermos sinceros, ninguém sabe no que essa crise toda vai resultar e nem se, depois da pandemia, um projeto dessa envergadura ainda vai ter espaço na vida das pessoas.

Nesse sentido, vemos a publicação como um ato desnecessário, porque se o processo de expulsão das famílias dos locais atuais, ainda que seja para outra parte do território, entrar em curso — e nós não estamos nos referindo ao atual momento, porque não vemos a mínima condição disso acontecer no cenário atual, embora a ameaça seja real e grave. O que queremos dizer é que, se o Estado contrariar os dispositivos internacionais e a constituição e insistir em fazer o deslocamento das comunidades localizadas no litoral, teremos um desastre humanitário em Alcântara sem precedentes. Um desastre humanitário capaz de manchar a biografia de qualquer entusiasta de projetos faraônicos. Nós esperamos que ninguém esteja disposto a apostar tão alto em um projeto que se apresenta mais como uma aposta de governo do que um projeto de Estado. O grande problema disso é que, sendo aposta ou não, dando certo ou não, isso incide sobre nossas vidas, porque somos nós que estamos com o ônus da aposta alheia há praticamente meio século.

A resolução teve um impacto violento em nossas vidas, porque causa dor, apreensão, incertezas, uma vez que, ela colide com o nosso desejo de vivermos em paz no nosso território. A resolução ao propor o deslocamento compulsório em massa atenta contra nossa vida, porque ameaça a integralidade do nosso território que é imprescindível para a nossa reprodução física, cultural, religiosa. Negar o nosso direito sobre o nosso território se constitui em um atentado contra a nossa ancestralidade e contra o nosso modo de vida. É negar a nossas filhas e filhos e a futuras gerações o direito ao território ancestral. Ou seja, é uma forma de nos matar ainda que nós nos mantenhamos de pé.

Por isso entendemos que a resolução se constitui em mais um ato trágico de espetáculo sóbrio que o Estado brasileiro tem promovido em Alcântara nos últimos 40 anos. Em última análise, a Resolução n.11 demonstra como o projeto espacial assumiu o racismo tanto estrutural quanto institucional como o único mediador possível em Alcântara.

Instituir o medo e o pânico como método para dominar um povo só encontra paralelo no potentado colonial e no autoritarismo militar. É o racismo que está posto! Ao decidir pela expulsão das comunidades quilombolas de Alcântara de suas terras em período de isolamento social, general mostra ter domínio deste procedimento racista e sabe muito bem os efeitos psicológicos que isso terá nas pessoas. É nesse sentido que se entende que tanto o episódio da “fuga dos brancos” narrado por Montello em seu romance quanto a Resolução n.11 assinada pelo general estão relacionadas, porque ambos constituem tentativa de genocídio dos quilombolas de Alcântara. Entretanto, assim como a noite passou para os nossos ancestrais, ela irá passar para nós também!

*vide Almeida, Alfredo Wagner Berno (2017). A Ideologia da Decadência. Leitura antropológica de uma história da agricultura do Maranhão. Manuas. UFAM/Casa8.

 


Sobre os autores

Davi é quilombola da comunidade de Itamatatiua em Alcântara, antropólogo e doutorando na Universidade do Texas, em Austin. É assessor voluntário do Movimentos dos Atingidos pela Base de Alcântara.

Neta de Canelatiua, Dorinete é da comunidade quilombola Canelatiua, coordenadora do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara, agente de saúde e responsável pelo Centro de Saberes Quilombola Mãe Anica.

Danilo é quilombola de Alcântara, jurista, cientista político e assessor jurídico do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe).

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