Nós, os crueis

Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles negros e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Como descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da maldade destilada e instilada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

Por: blog da Conceição

 O mais célebre trecho do indispensável Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, queima no peito dos brasileiros que estamos acompanhando a brutalidade dos acontecimentos recentes: homens amarrados a postes, atirados ao chão com as mãos presas por algemas improvisadas, episódios de racismo, moradores de rua queimados como se fossem dejetos de uma humanidade inexistente. No caso dos suspeitos de furto levados ao pelourinho desses tempos extremos, é inequívoca a aprovação da turba ignóbil que se sente autorizada às atrocidades, porque, via internet, se sente reconhecida e acompanhada.

A rede mundial de computadores desvelou um Brasil de que poucos tinham lúcida noção. A gente alegre, hospitaleira, malemolente, cordial e musical que somos é também a gente marcada a ferro e fogo pelos mais de 300 anos de escravidão. Os senhores e os escravos continuam a habitar a carne de cada um de nós, aceitemos ou não. São três séculos de escravidão para pouco mais de um século de homens livres. É uma camada muito tênue de civilização sobre um fundo espesso de barbárie — o que seria o regime escravocrata senão a selvageria como forma de organização e funcionamento da sociedade?

Faz algum tempo, talvez quase dez anos, escrevi uma crônica de febril indignação pelo assassinato de um adolescente que teria pichado as paredes de uma casa no Guará. Flagrado pelo dono, foi executado. Pelas reações ao texto publicado no blog, o crime foi justificado, apoiado e aplaudido, com diferentes intensidades de pessoa para pessoa. Foi meu primeiro grande susto com a internet, foi a descoberta de que, na dimensão virtual, as pessoas revelavam o que, no corpo a corpo, na letra escrita e assinada, talvez não tivessem coragem de fazê-lo.

As leis de salvaguarda da igualdade racial e dos demais direitos humanos, acompanhadas pelas regras sociais do politicamente correto, conseguiram de algum modo conter a maldade “destilada e instilada em nós”. Seja no papel de senhores (e senhoras e senhorinhas), seja no papel de servos, exercitamos a terrível herança de um povo único no mundo: formado pela mistura de raças, mas marcado, tatuado, deformado pelos três séculos de domínio cruel da pele branca sobre a pele negra e a pele índia.

Ainda serão necessários quantos séculos, quantas leis, quantos gritos para que nós, os brasileiros, possamos esmaecer essa herança impiedosa?

Fonte:Blog Crônica da Cidade

-+=
Sair da versão mobile