Por Douglas Belchior
Em agosto de 2013, no ato de lançamento do Estatuto da Juventude, após receber das mãos do rapper GOG e do ator Érico Braz, uma carta de denúncia e exigência de providências quanto ao genocídio da juventude negra, a presidenta Dilma disse: “(…) essa talvez seja a questão mais grave que a juventude brasileira passa, porque ela mostra um lado com que não podemos conviver pacificamente, que é o da violência contra a juventude negra e pobre (…) uma das coisas que eu considero mais graves no Brasil hoje é a violência contra a juventude. É o lado mais perverso”.
Cerca de 3 meses depois, no ato de abertura da 3ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, aclamada pelo público presente, a presidenta foi mais uma vez categórica: “A sociedade brasileira tem que arcar com as consequências do longo período escravocrata”. Na época refleti sobre o peso dessas declarações em um texto publicado por esse Blog.
No início deste mês de março, em razão das manifestações racistas no futebol brasileiro, a presidenta, agora pelo twitter, uma vez mais caprichou na declaração: “É inadmissível que o Brasil, a maior nação negra fora da África, conviva com cenas de racismo”.
Na última quinta-feira, (13/03) tive a oportunidade de lembrar essas declarações à Presidenta e dizer a ela que, se é positivo e simbólico posicionamentos desse nível proferidos pela chefa maior do Estado Brasileiro, é ainda mais importante ações concretas que acompanhem o peso das declarações, coisa que infelizmente não percebemos.
A convocação da presidenta, que reuniu representação de organizações negras no Palácio do Planalto na última semana, reafirmou a impressão de que o governo joga para plateia no que diz respeito ao combate ao racismo. Age a medida de conjunturas que obrigam manifestações e posicionamentos, assim como foi no lançamento do Estatuto da Juventude, depois na CONAPIR e agora em razão das manifestações racistas no futebol brasileiro.
As representações negras que lá estiveram, mesmo aqueles alinhados ao governo, foram incisivos em suas colocações e cobranças. Mesmo a representação da SEPPIR, ao dirigir a preparação da intervenção do grupo em diálogo pouco antes da audiência oficial, mostrou-se consciente da necessidade de uma radicalização da pauta. No entanto, o pouco tempo dispensado na agenda presidencial e o formato, cordial e gerencial do encontro, mostrou uma presidente de retórica afiada e sensível, mas pouco comprometida com iniciativas mais consistentes.
Como resultado, o compromisso de uma campanha de combate e repúdio ao racismo que deve ser promovido em função da Copa do Mundo e uma ou outra iniciativa de instituição ou ampliação de cotas raciais em editais de ministérios ou coisa que o valha. Iniciativas importantes, mas pouco para a necessidade e a realidade de barbárie cotidiana a que está exposta a população negra no Brasil.
Em nome do Blog NegroBelchior e das organizações do movimento negro Círculo Palmarino, Núcleo de Consciência Negra na USP, Instituto Luis Gama, Coletivo Quilombação – USP, Grupo de Pesquisas Novo Bandung – UFABC, Uneafro-Brasil e Associação Franciscana de Defesa de Direitos e Formação Popular, apresentei uma Carta de Reivindicações à Ministra Luiza Bairros, ao Ministro Gilberto de Carvalho e à Presidenta Dilma. Não houve respostas objetivas às demandas, mas o compromisso de continuidade do diálogo.
Há questões emergenciais no combate ao racismo que podem e devem se dar até mesmo por iniciativa unilateral da presidência, tais como a titulação e demarcação de territórios quilombolas e indígenas; a federalização de casos emblemáticos de violência policial tal qual os Crimes de Maio de 2006 em São Paulo; a transformação do Plano Juventude Viva em um Programa sério, com recursos suficientes à sua necessidade; ou ainda a criação de um Fundo de Reparação Histórica e Humanitária para os descendentes da população escravizada e indígena no Brasil. Mas para isso é necessário, por parte do Governo, mais que palavras e tapinhas nas costas, e por parte dos movimentos, uma mobilização de negras e negros organizados que, a partir de uma plataforma unificada e radical – no sentido positivo do termo, seja capaz de fazer do combate ao racismo e do tema das reparações históricas, algo que não possa ser ignorado.
Desconfio de que estamos distantes de ambas as situações.
Leia abaixo a íntegra da Carta de Reivindicações entregues ao Governo Federal:
Brasília, 13 de Março de 2014
À
Exma. Sra. Presidenta da República Federativa do Brasil Dilma Rousseff
C.C. Srs. Ministros (os) de Estado, Lideranças partidárias da Câmara dos Deputados e Senado Federal
Racismo no campo e fora dele. Como enfrentar?
Em um curto período de 30 dias, 3 jogadores brasileiros e um árbitro foram atacados com xingamentos racistas durante partidas de futebol. Tinga, jogador do Cruzeiro, foi hostilizado em partida da Libertadores contra o Real Garcilaso, disputada em Huancayo, no Peru. O Volante Arouca, do Santos, foi ofendido por torcedores do Mogi-Mirim, no interior de São Paulo. Assis, lateral do Uberlândia também ofendido por um membro da torcida do Mamoré durante partida do Módulo 2 do Campeonato Mineiro e no Campeonato Gaúcho, o árbitro Márcio Chagas da Silva foi xingado e encontrou bananas sobre o seu carro após o jogo entre Esportivo e Veranópolis, em Bento Gonçalves.
Esses acontecimentos em plena véspera de copa do mundo repercutiram mal dentro e fora do Brasil. Afinal, não é possível que no país do futebol, do carnaval, do samba, das “mulatas”, da democracia racial enfim, o país com a maior população negra fora da África, tenhamos de conviver com seguidas e coletivas manifestações racistas.
O fato é que vivemos sim em um país violentamente racista. Pior, vivemos em um país reconhecido e denunciado internacionalmente pela negação de direitos básicos, pela desigualdade de oportunidades, pela nula representação política e mais: um país que tortura, aprisiona e mata, como se em uma guerra, mulheres, homens e principalmente a juventude negra.
Repudiar o racismo dos outros, como no caso da torcida peruana ao jogador Tinga; Comover-se com a história do racismo nos EUA ou na África do Sul, caracterizadas pela reação ao filme “12 anos de escravidão” e a comoção pela morte de Mandela ou, for fim, surpreender-se com o racismo caseiro das torcidas contra jogadores e juíz e, ao mesmo tempo, silenciar o cotidiano de desgraças impostas à população negra brasileira é mais que hipocrisia ou cinismo. É a prova de quão poderosa e eficaz é a ideologia de dominação racial que permanece intocável em nosso país.
Precisamos aproveitar esses lamentáveis acontecimentos para colocar em pauta junto à sociedade brasileira a necessidade do efetivo combate ao racismo e principalmente o enfrentamento à sua negação.
Acreditamos que a superação do racismo bem como das maiores mazelas que atinge o povo brasileiro depende também do rompimento com os interesses do grande capital privado e de sua lógica de operação do Estado. Não será por pequenas reformas ou políticas compensatórias que alcançaremos mudanças estruturais capazes de eliminar as desigualdades. Mas é preciso dar respostas possíveis e concretas aos problemas do agora e para isso propomos:
1 – A população Negra, maioria do povo brasileiro, é também quantidade muito significativa dos responsáveis pela produção e pelo consumo em nossa sociedade. A riqueza e a sustentação da nação brasileira passam por suas mãos. Não é justo que essa população continue vivendo a margem das oportunidades e exposta a violências tão profundas. É papel do Estado, promover um permanente incentivo à cultura da diversidade, do respeito e de valorização aos direitos humanos. É necessário agir.
2 – O Estado é, na relação com a população, o primeiro promotor do racismo. Seja através dos serviços de saúde pública, precários como são; através dos serviços educacionais, degradados e segregatórios como estão e são; ou através da segurança pública e sua força repressiva, seletiva, violenta e letal, como sabemos. O enfrentamento ao racismo estrutural e institucional é o primeiro passo para construção de um imaginário e uma cultura de respeito às diferenças, valorização da diversidade cultural, religiosa, política e aos valores dos direitos humanos.
Educação e mobilização para o combate ao racismo:
Sobre a violência racista:
Assinam
Uneafro Brasil
Círculo Palmarino
Núcleo de Consciência Negra na USP
Instituto Luis Gama
Coletivo Quilombação – USP
Grupo Pesquisas Novo Bandung – UFABC
Blog NegroBelchior – Carta Capital
Associação Franciscana de Defesa de Direitos e Formação Popular
Fonte: Negro Belchior