Nota sobre encontro de representantes do movimento negro com a presidenta Dilma, no dia 13 de março de 2014

Por Douglas Belchior

 
 

Em agosto de 2013, no ato de lançamento do Estatuto da Juventude, após receber das mãos do rapper GOG e do ator Érico Braz, uma carta de denúncia e exigência de providências quanto ao genocídio da juventude negra, a presidenta Dilma disse: “(…) essa talvez seja a questão mais grave que a juventude brasileira passa, porque ela mostra um lado com que não podemos conviver pacificamente, que é o da violência contra a juventude negra e pobre (…) uma das coisas que eu considero mais graves no Brasil hoje é a violência contra a juventude. É o lado mais perverso”.

 

Cerca de 3 meses depois, no ato de abertura da 3ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, aclamada pelo público presente, a presidenta foi mais uma vez categórica: “A sociedade brasileira tem que arcar com as consequências do longo período escravocrata”. Na época refleti sobre o peso dessas declarações em um texto publicado por esse Blog.

 

No início deste mês de março, em razão das manifestações racistas no futebol brasileiro, a presidenta, agora pelo twitter, uma vez mais caprichou na declaração: É inadmissível que o Brasil, a maior nação negra fora da África, conviva com cenas de racismo”.

 

Na última quinta-feira, (13/03) tive a oportunidade de lembrar essas declarações à Presidenta e dizer a ela que, se é positivo e simbólico posicionamentos desse nível proferidos pela chefa maior do Estado Brasileiro, é ainda mais importante ações concretas que acompanhem o peso das declarações, coisa que infelizmente não percebemos.

A convocação da presidenta, que reuniu representação de organizações negras no Palácio do Planalto na última semana, reafirmou a impressão de que o governo joga para plateia no que diz respeito ao combate ao racismo. Age a medida de conjunturas que obrigam manifestações e posicionamentos, assim como foi no lançamento do Estatuto da Juventude, depois na CONAPIR e agora em razão das manifestações racistas no futebol brasileiro.

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As representações negras que lá estiveram, mesmo aqueles alinhados ao governo, foram incisivos em suas colocações e cobranças. Mesmo a representação da SEPPIR, ao dirigir a preparação da intervenção do grupo em diálogo pouco antes da audiência oficial, mostrou-se consciente da necessidade de uma radicalização da pauta. No entanto, o pouco tempo dispensado na agenda presidencial e o formato, cordial e gerencial do encontro, mostrou uma presidente de retórica afiada e sensível, mas pouco comprometida com iniciativas mais consistentes.

Como resultado, o compromisso de uma campanha de combate e repúdio ao racismo que deve ser promovido em função da Copa do Mundo e uma ou outra iniciativa de instituição ou ampliação de cotas raciais em editais de ministérios ou coisa que o valha. Iniciativas importantes, mas pouco para a necessidade e a realidade de barbárie cotidiana a que está exposta a população negra no Brasil.

Em nome do Blog NegroBelchior e das organizações do movimento negro Círculo Palmarino, Núcleo de Consciência Negra na USP, Instituto Luis Gama, Coletivo Quilombação – USP, Grupo de Pesquisas Novo Bandung – UFABC, Uneafro-Brasil e Associação Franciscana de Defesa de Direitos e Formação Popular, apresentei uma Carta de Reivindicações à Ministra Luiza Bairros, ao Ministro Gilberto de Carvalho e à Presidenta Dilma. Não houve respostas objetivas às demandas, mas o compromisso de continuidade do diálogo.

Há questões emergenciais no combate ao racismo que podem e devem se dar até mesmo por iniciativa unilateral da presidência, tais como a titulação e demarcação de territórios quilombolas e indígenas; a federalização de casos emblemáticos de violência policial tal qual os Crimes de Maio de 2006 em São Paulo; a transformação do Plano Juventude Viva em um Programa sério, com recursos suficientes à sua necessidade; ou ainda a criação de um Fundo de Reparação Histórica e Humanitária para os descendentes da população escravizada e indígena no Brasil. Mas para isso é necessário, por parte do Governo, mais que palavras e tapinhas nas costas, e por parte dos movimentos, uma mobilização de negras e negros organizados que, a partir de uma plataforma unificada e radical – no sentido positivo do termo, seja capaz de fazer do combate ao racismo e do tema das reparações históricas, algo que não possa ser ignorado.

Desconfio de que estamos distantes de ambas as situações.

 

Leia abaixo a íntegra da Carta de Reivindicações entregues ao Governo Federal:

 

Brasília, 13 de Março de 2014

À

Exma. Sra. Presidenta da República Federativa do Brasil Dilma Rousseff

C.C. Srs. Ministros (os) de Estado, Lideranças partidárias da Câmara dos Deputados e Senado Federal

Racismo no campo e fora dele. Como enfrentar?  

Em um curto período de 30 dias, 3 jogadores brasileiros e um árbitro foram atacados com xingamentos racistas durante partidas de futebol. Tinga, jogador do Cruzeiro, foi hostilizado em partida da Libertadores contra o Real Garcilaso, disputada em Huancayo, no Peru. O Volante Arouca, do Santos, foi ofendido por torcedores do Mogi-Mirim, no interior de São Paulo. Assis, lateral do Uberlândia também ofendido por um membro da torcida do Mamoré durante partida do Módulo 2 do Campeonato Mineiro e no Campeonato Gaúcho, o árbitro Márcio Chagas da Silva foi xingado e encontrou bananas sobre o seu carro após o jogo entre Esportivo e Veranópolis, em Bento Gonçalves.

Esses acontecimentos em plena véspera de copa do mundo repercutiram mal dentro e fora do Brasil. Afinal, não é possível que no país do futebol, do carnaval, do samba, das “mulatas”, da democracia racial enfim, o país com a maior população negra fora da África, tenhamos de conviver com seguidas e coletivas manifestações racistas.

O fato é que vivemos sim em um país violentamente racista. Pior, vivemos em um país reconhecido e denunciado internacionalmente pela negação de direitos básicos, pela desigualdade de oportunidades, pela nula representação política e mais: um país que tortura, aprisiona e mata, como se em uma guerra, mulheres, homens e principalmente a juventude negra.

Repudiar o racismo dos outros, como no caso da torcida peruana ao jogador Tinga; Comover-se com a história do racismo nos EUA ou na África do Sul, caracterizadas pela reação ao filme “12 anos de escravidão” e a comoção pela morte de Mandela ou, for fim, surpreender-se com o racismo caseiro das torcidas contra jogadores e juíz e, ao mesmo tempo, silenciar o cotidiano de desgraças impostas à população negra brasileira é mais que hipocrisia ou cinismo. É a prova de quão poderosa e eficaz é a ideologia de dominação racial que permanece intocável em nosso país.

Precisamos aproveitar esses lamentáveis acontecimentos para colocar em pauta junto à sociedade brasileira a necessidade do efetivo combate ao racismo e principalmente o enfrentamento à sua negação.

Acreditamos que a superação do racismo bem como das maiores mazelas que atinge o povo brasileiro depende também do rompimento com os interesses do grande capital privado e de sua lógica de operação do Estado. Não será por pequenas reformas ou políticas compensatórias que alcançaremos mudanças estruturais capazes de eliminar as desigualdades. Mas é preciso dar respostas possíveis e concretas aos problemas do agora e para isso propomos:

1 – A população Negra, maioria do povo brasileiro, é também quantidade muito significativa dos responsáveis pela produção e pelo consumo em nossa sociedade. A riqueza e a sustentação da nação brasileira passam por suas mãos. Não é justo que essa população continue vivendo a margem das oportunidades e exposta a violências tão profundas. É papel do Estado, promover um permanente incentivo à cultura da diversidade, do respeito e de valorização aos direitos humanos. É necessário agir.

2 – O Estado é, na relação com a população, o primeiro promotor do racismo. Seja através dos serviços de saúde pública, precários como são; através dos serviços educacionais, degradados e segregatórios como estão e são; ou através da segurança pública e sua força repressiva, seletiva, violenta e letal, como sabemos. O enfrentamento ao racismo estrutural e institucional é o primeiro passo para construção de um imaginário e uma cultura de respeito às diferenças, valorização da diversidade cultural, religiosa, política e aos valores dos direitos humanos.

Educação e mobilização para o combate ao racismo:

  • Ação emergencial de práticas de Educação Popular para o combate ao racismo e o fomento da diversidade e dos direitos humanos em todo país através do fortalecimento de organizações negras que desenvolvem projetos no campo educacional; Ampliação e massificação de iniciativas governamentais tais como os programas Justiça Comunitária e Casa de Direitos (Plano de Enfrentamento  à Violência nas Periferias Urbanas), Pontos de Cultura, Casas de Cultura entre outros.
  • Criação do Fundo para Reparação Histórica e Humanitária para os Descendentes de Escravizados e Indígenas (Previsto pela Declaração de Durban – África – 2001)
  •  

  • Campanha Nacional de Mobilização pela Prática da Lei 10639 nas escolas públicas do país; Criação de instrumentos de acompanhamento e cobrança da execução da Lei ante as administrações Públicas; Ampliação para 10% do PIB para Educação já! – Ação em conjunto com movimento negro;
  • Criação da Comissão Nacional da Verdade, Memória e Justiça para os Crimes da Escravidão e Crimes de hoje por parte do Estado – Que reúna pesquisadores, historiadores, antropólogos, economistas, religiosos, artistas e movimento negro, etc, para recontar a história e reconstruir a memória nacional a partir da escravidão negro-indígena;
  • Transformação do Plano Juventude Viva em PROGRAMA, para que avance para além de um apanhado de políticas pré-existentes, com destinação de recursos equivalentes à gravidade do problema que se dispõe a enfrentar e garantia de autonomia de ação;
  • Titulação de todos os territórios quilombolas e indígenas e emergencial retomada da reforma agrária – Casos emblemáticos: Quilombo do Rio dos Macacos Salvador/BA e Povo Guarani Kaiowas – MS;
  • Promoção de espaços de diálogo, audiências e consultas públicas permanentes, abertas e livres por parte do governo no que diz respeito a temática do combate ao racismo;
  • Mudança na Lei de Cotas Federal: que o percentual de negras/os por estado incida sobre 100% das vagas;
  • Pronunciamento em rede nacional – sobre o problema do racismo enquanto estruturante das desigualdades e herança cultural a ser combatida; Divulgação da agenda de ações antirracistas;
  • Força tarefa de todos os ministérios no sentido de, de maneira articulada, assumir o genocídio da juventude negra como uma realidade e a co-responsabilidade do Estado e a partir daí, construir espaços de elaboração de ações interministeriais de enfrentamento ao genocídio; Data para apresentação de metas e resultados das ações; prioridade de governo.
  •  

     Sobre a violência racista:

  • Regulamentação do artigo 5º. da Constituição brasileira que define o racismo como crime inafiançável, e imprescritível; Tornar Racismo como Crime de Lesa Humanidade;
  • Desmilitarização das polícias e imediato debate público sobre um novo modelo de segurança pública – comunitária, humanizada e antirracista;
  • Não aprovação de leis “anti-terror” que criminalizem movimentos sociais e determinados perfis de grupos;
  • Pela revogação imediata da Portaria Normativa 3461/13, publicada pelo Ministério da Defesa, que disciplina a atuação das Forças Armadas em ações de segurança pública e que institui o Manual de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que atribui poder de polícia às três Forças Armadas, mediante ordem da presidente da República;
  • Aprovação do PL 4471 que prevê o fim dos “autos de resistência” em todo país;
  • Fim da revista vexatória;
  • Federalização dos crimes cometidos por policiais civis e militares – Caso emblemáticos dos Crimes de maio de 2006 em São Paulo;
  • Formulação de um projeto que responsabilização penal de racismo e assassinatos promovidos por policiais;
  • Política de apoio psicossocial para familiares de vítimas do Estado;
  • Indenização para familiares de vítimas do Estado;
  • Imediato mutirão do Judiciário para revisão de penas dos presos;
  • Chega de prisões! Pelo fim da política do encarceramento em massa;
  • Pelo direito democrático às manifestações livres e autônomas, sem necessidade de tutela, acordo ou aviso prévio à instituições repressivas do Estado; Pelo direito à LIVRE manifestação, sempre garantido o pressuposto da dignidade humana;
  • Assinam

    Uneafro Brasil

    Círculo Palmarino

    Núcleo de Consciência Negra na USP

    Instituto Luis Gama

    Coletivo Quilombação – USP

    Grupo Pesquisas Novo Bandung – UFABC

    Blog NegroBelchior – Carta Capital

    Associação Franciscana de Defesa de Direitos e Formação Popular

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    Fonte: 

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