Notas sobre a produção racial cotidiana do cárcere

“Mais uma vez quero afirmar que minhas reflexões como um jurista negro me levaram a conhecer a relevância do protagonismo negro. Não há possibilidade de construção de uma sociedade racialmente justa quando praticamente todas as instituições sociais são controladas por pessoas do mesmo grupo racial.”

(Adilson José Moreira)

Hoje, assim como o fez Abdias Nascimento em oportunidade pública (NASCIMENTO, 2019)[1], evocaremos as vozes da população negra objeto de intimidações, ameaças e agressões de todas as naturezas – quase sempre impedidas de serem ouvidas nesse país que se diz “democrático” –, mas em especial daqueles negros e negras silenciados pelo sistema de justiça, ainda tão pautado pela razão e pelos privilégios da branquitude. Evocaremos vozes negras que, em plena pandemia, passarão a virada desse terrível ano encarceradas de maneira degradante.

No Brasil, diversas pesquisas apontam o caráter seletivo do sistema penal que contribui para a violação sistemática de direitos humanos fundamentais das pessoas negras dentro dos cárceres. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que nossa realidade penitenciária constitui um “estado de coisas inconstitucional”. Entretanto, em relação às explicações raciais da permanência desse fenômeno, de uma maneira geral, o silêncio impera nas peças e atos processuais das promotoras(es), defensoras(es), magistradas(os), e demais atores da seara jurídica. 

Imagem: Gerd Altmann / Pixabay – Montagem: Justificando

Alguns dados talvez possam dialogar um pouco sobre essa dinâmica.

A pesquisadora Juliana Borges (BORGES, 2019)[2] explica que o Brasil ocupa a infeliz marca de terceira maior população prisional do mundo e os corpos negros constituem 64% da população carcerária, enquanto o mesmo grupo compõe cerca de 55% da população brasileira.

Em contrapartida, conforme pesquisa do Conselho Nacional de Justiça, 80% das(os) magistrada(os) são brancas(os). De acordo com estudo realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, 77% das(os) membras(os) do Ministério Público se autodeclaram brancas(os). Por sua vez, o IV Diagnóstico da Defensoria Pública mostra que, as defensoras(es) públicas(os) brancas(os) somam 76,4% e 73,7% nas esferas estadual e federal, respectivamente.

É sintomático que o extenso processo de escravização e sua abolição inconclusa transformou-se em criminalização da população negra. O caminho colonial imposto de exclusão social e inferiorização dos nossos corpos e das nossas mentes edificou uma importante ferramenta também responsável pelo genocídio do povo negro brasileiro: o encarceramento. Sabemos para quem ele é direcionado, mas tal implicação não é discutida usualmente na prática forense.

A branquitude enuncia suas regras também nas carreiras jurídicas criminais, onde as reflexões sobre a temática racial são constantemente silenciadas. Ocorre que, nas palavras de Maria Aparecida Silva Bento “o silêncio não é transparente. Ele é tão ambíguo quanto as palavras. Desta forma, a ideologia está em pleno funcionamento no que obrigatoriamente se silencia” (BENTO, 2002).[3]

Em meio à sanha punitivista, o mito da democracia racial parece permanecer intacto e indissolúvel no sistema de justiça criminal. A propagação da ideia de fraternidade racial que teve seu ápice internacionalmente conhecido nas ideias de Gilberto Freyre, tenta invisibilizar como são tratados os destinatários certos da mais pesada mão estatal, sob o manto do discurso da neutralidade racial e não-discriminação, apesar dos dados estatísticos demonstrarem o encarceramento massivo da população negra, filhos e filhas de homens e mulheres da diáspora africana no Brasil. 

Estatisticamente, não há como negar que os corpos juridicamente corresponsáveis pela segregação daqueles que descendem dos africanos escravizados nesta nação são essencialmente brancos. A engrenagem é certa. Em regra, o responsável pela acusação é branco, a defesa pública do acusado é realizada pelo branco e aquele que decide, encaminhando os corpos negros às masmorras penitenciárias são, sobretudo, brancos. Eles controlam, no âmbito jurídico criminal, quem entrará, quem permanecerá e quem (se resistir) sairá do cárcere e de todo o processo de desumanização que isso acarreta. Neste ponto, importante refletirmos se, em última análise, esses agentes estão a exercer a chamada necropolítica delineada por Achille Mbembe, ou seja, se em seus ofícios exercitam o poder de matar, deixar viver ou expor à morte os destinatários do cárcere (MBEMBE, 2018).[4]

Todo o contexto histórico brasileiro faz crer, assim como em outros países que foram marcados pela escravidão, que o aprisionamento de corpos certos e específicos constitui um modelo sofisticado e bem sólido de racismo institucional contra os negros e que raramente é reconhecido como racista (DAVIS, 2018).[5]

A dicotomia existente entre os que encarceram (brancos) e os que são encarcerados (negros), assim como os reflexos racialmente advindos dessa dinâmica precisam ser diuturnamente questionados, ainda que se inicie pelo processo de constrangimento. No dia a dia dos fóruns criminais desse país, é possível perceber a diferença de tratamento dispensada ao acusado branco em relação ao negro. Os marcadores raça/cor influenciam desde a manutenção da prisão provisória decorrente de flagrantes até a dosimetria da pena. A dinâmica do processo criminal – cujos atores constantemente negam ser racistas – legitima a todo instante as abordagens, mesmo que ilegais, das forças de segurança pública e privada baseadas na abominável filtragem racial.

Por isso é tão necessária a construção de uma hermenêutica jurídica que faça as ligações entre o espectro criminalidade e os efeitos deletérios do passado brasileiro escravista, tendo a questão racial na centralidade das discussões. Tal perspectiva é urgente para alcançarmos um sistema jurídico criminal que não perpetue as desigualdades forjadas pelo racismo estrutural e estruturante que nos circunda.

Na caminhada como juristas negras e negros devemos saber que quando pedimos, manifestamos ou decidimos dentro do sistema de justiça, carregamos todos os esforços da nossa ancestralidade que resistiu e resiste ao racismo, ao colonialismo e ao eurocentrismo cotidiano. Precisamos entender que os que vieram antes de nós nos impulsionaram a estar onde estamos e reconhecermos a responsabilidade de representar os nossos que raramente enxergam suas imagens refletidas nos integrantes das carreiras jurídicas que definirão seu destino, seja por ações ou omissões durante o tramitar de um eventual processo penal em seu desfavor. 

Especificamente no âmbito de atuação criminal, nossas vozes negras hão de continuar bradando que o lugar dos nossos corpos não é no cárcere e que o protagonismo negro se fará cada vez mais presente no espaço jurídico, construindo estratégias coletivas para o alcance de um sistema jurídico-penal democrático, e sem as hierarquias raciais até então exteriorizadas. 

O caminho é longo, mas existir e resistir criativamente é herança do nosso povo. Estamos para subverter essa ordem, ou melhor, essa desordem racial naturalizada. 

Salomão Rodrigues da Silva Neto é defensor público coordenador do Grupo de Trabalho pela Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado de Goiás

Notas:

[1] NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019.

[2] BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro: Pólen, 2019.

[3] BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. 2002. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.

[4] MBEMBE, Achille. Necropolítica. 6ª reimpressão. São Paulo: n-1 edições, 2020.

[5] DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? 2ª Edição. Rio de Janeiro: Difel, 2018.

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