Nova geração usa redes sociais para bater de frente com o racismo sem meias palavras

FONTEPor Amanda Pinheiro e Gilberto Porcidonio, do O Globo
(Foto: Getty Images)

“Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes”, diz uma parte do hit “AmaRelo”, do rapper Emicida. Ele virou o hino de uma geração que, ao mesmo tempo que não deseja se ver restrita apenas à luta contra o racismo, também vem batendo de frente contra ele sem meias-palavras.

Já houve época em que casos como o do entregador Matheus Fernandes, de 18 anos — acusado por dois policiais militares que faziam a segurança privada de uma loja do Ilha Plaza Shopping, na Zona Norte do Rio, de ter roubado um relógio que ele mesmo havia comprado para o pai — não ganhavam tanta notoriedade.

Mesmo com a nota fiscal do produto, Matheus foi retirado da loja, agredido e teve até uma arma apontada contra a cabeça. A ação, gravada por testemunhas, tomou as redes e a Polícia Civil irá indiciar os dois PMs por racismo e abuso de autoridade. Matheus, temendo ameaças, precisou sair de casa e está sem trabalhar.

— Me sinto inseguro porque, se fizeram isso comigo em um shopping, Deus me livre do que podem fazer na rua. Mas fiquei feliz porque outros rapazes que também sofreram isso lá soltaram a voz — disse o jovem, que sonha em seguir a carreira militar e se diz inspirado pelas letras do rapper mineiro Djonga, todas muito incisivas sobre o racismo:

— É o cara em que eu me espelho. Nós nunca conversamos sobre racismo em casa, mas eu peguei essa visão.

A jovem Tatiana Nefertari, de 24 anos, da Biblioteca Comunitária Assata Shakur, de São Paulo, observa que os ataques aumentam conforme as pessoas ganham visibilidade (Foto: Imagem retirada do site O Globo)

A visão antirracista vinda da música também ajudou Tatiana Nefertari, 24 anos, cuja família tampouco tratava de questões raciais com frequência. Empoderada, pelo samba e pelo rap, ajudou a criar, no ano passado, a Biblioteca Comunitária Assata Shakur, na periferia da zona leste de São Paulo, dedicada a livros de pessoas pretas e às histórias dos povos africanos.

Muito ativa nas redes, ela também observa que os ataques online têm se intensificado, justamente, por causa desta geração que se recusa a abaixar a cabeça.

— As pessoas não sabem lidar com os questionamentos das pessoas pretas quando apontamos o racismo e, quanto mais visibilidade se tem, mais ataques se sofre. É como se você estivesse em uma vitrine para que tacassem pedra. Eu acho preocupante — disse Tatiana.

Moradora de Duque de Caixas, na Baixada Fluminense, a programadora e pesquisadora Nina da Hora, de 25 anos, cursa Ciência da Computação na PUC-Rio e já teve diversos embates com pessoas e processos seletivos que a julgaram pela cor de sua pele. Como a sua história é como a de tantos jovens, Nina observa que a internet apenas tornou público o debate que já acontecia entre esta geração de negros que se uniram em “aquilombamentos”, como grupos e coletivos, e que estão cansados das agressões racistas. Por isso, o discurso se torna muito mais direto e incisivo.

— Nós somos um pouco afobados e até “abusados” às vezes porque a gente não escuta quem veio antes da gente, mas acredito que exista uma vontade de que as coisas sejam faladas e feitas por nós, e não mais para nós. Essa microagressão a gente não permite mais. Agora, temos que juntar os antirracistas da internet com os de fora dela, porque, às vezes, parecem dois mundos diferentes.

Nina da Hora é programadora e pesquisadora (Foto: Ana Branco / Agência O Globo)

Segundo o Disque 100, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, no primeiro semestre de 2019, houve um aumento de 56% nas denúncias de intolerância religiosa, sendo a maior parte feita por pessoas da Umbanda e do Candomblé. Diariamente, praticantes de religiões afro-brasileiras enfrentam uma série de ataques, sobretudo pela falta de informação e o racismo, que também atua neste universo. A cientista política e ativista, Nailah Neves, de 28 anos, utiliza suas redes sociais para informar sobre esses assuntos, além de conteúdos antirracistas. Ela, que é do Ilê Asé Orisá Dewi, um dos mais antigos da nação Ketu, em Brasília, contou que essas pautas sempre foram recorrentes em casa.

— Meus pais são do MNU (Movimento Negro Unificado) e conversavam comigo e com meu irmão para termos noção do que é o racismo e como reagir, porque além de ser uma mulher negra, sou afro-religiosa. Uma vez, eu e meu irmão estávamos na 4ª série, de uma escola particular, onde a maioria era branca e percebemos um livro onde as pessoas negras eram representadas como macacos. Durante anos ninguém percebeu aquilo. Além disso, já recebi ameaças de morte na redes sociais e fora delas, tudo por causa do meu posicionamento antirracista e pela religião — afirmou Naila que ressalta a importância dessa nova ferramenta.

— Houve um encontro de duas estratégias: o acesso aos espaços de poder para produção e a internet como uma ferramenta para potencializar. Nas redes, temos o Black Twitter e fora delas, há outros movimentos como, por exemplo, se um rapaz é assassinado na favela e tentam associá-lo ao crime, as mães se posicionam e mobilizam a comunidade para mostrar que aquela pessoa não tinha nada a ver. No meu caso, eu falando sobre isso, aqui na minha cidade, serei silenciada. Na internet, eu tenho uma rede ao meu lado.

Joel Luiz Costa é advogado e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB do Rio de Janeiro (Foto: Flavia Palozza)

Joel Luiz Costa, de 31 anos, é advogado criminal da Favela do Jacarezinho e do Fórum Grita Baixada e, assim como outros ativistas, utiliza as redes sociais para discutir conteúdos antirracistas. Segundo ele, que também é membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB do Rio de Janeiro, seu letramento racial veio por meio de uma thread feita no Twitter.

— Eu sabia que era um homem negro, favelado, mas a profundidade das pautas foi a partir das redes sociais. Acredito que esse espaço oferece uma introdução ao tema, no qual você pode pesquisar depois, assim como foi o meu caso — relatou Joel que, em meio aos conteúdos e denúncias publicados na internet, enxerga dois movimentos paralelos:

— Existe a força coletiva da comunidade negra, que está ganhando voz e uma geração de pessoas brancas mais conscientes, que tem dado amplitude às nossas falas. E expor os casos de racismo também colabora com isso. Por exemplo, dias depois do caso do Matheus, um outro rapaz, que passou pela mesma situação, se sentiu encorajado para fazer sua denúncia — ressaltou.

Apesar do espaço ser uma ferramenta de combate, em contrapartida, as redes sociais são locais onde acontecem ataques a estes influenciadores negros. Nascida em Porto Alegre, Winnie Bueno, de 32 anos, é pesquisadora e criadora da Winnieteca, onde, por meio do Twitter conecta doadores de livros às pessoas negras que precisam. Criada pela mãe e pela avó, que foram responsáveis pela sua consciência racial, ela afirmou que a partir dos inúmeros ataques sofridos, desenvolveu algumas táticas de defesa.

— Existem perfis voltados especificamente para isso, e não só focados em mulheres negras, mas em pessoas LGBTQ+, população indígena, PCD (pessoas com deficiência). O racismo estrutura as relações sociais, o sistema de dominação e o fato de você estar na internet, ter um número grande de seguidores e uma verificação não te blinda desses ataques, pelo contrário. No geral, eu tento ignorar, mas não quer dizer que deixo passar. Eu falo da violência e do racismo nas redes somente quando acontece, e foi uma forma que encontrei de evitar esses ataques, além de manter um diálogo com outras mulheres negras que passam pela mesma situação — declarou ela que, defende o uso das redes como uma forma de informar e expor o racismo diário.

— Acredito que sempre houve uma reação. E, uma vez que a produção de intelectuais negros roda com maior velocidade, facilita que as pessoas constituam de forma autônoma um material intelectual e jurídico para vivenciar esse fato de uma maneira segura. E essa forma de compartilhar conhecimento é importante, porque possibilita maior acesso a textos, livros, reflexões políticas e críticas sobre raça e racismo que, no geral, ficam escritas na dimensão institucional do movimento negro. E esses conteúdos vêm tanto de figuras acadêmicas como Sueli Carneiro e Silvio Almeida, quanto de organizações de movimentos negros que têm utilizado mais as redes, por isso é importante essa ampliação.

Winnie Bueno é pesquisadora e criadora da Winnieteca (Foto: Marilia Dias / Divulgação)

E como fazer para lidar com tanto ódio contra si? A estudante Fatou Ndiaye, de 15 anos, que sofreu, em maio, ataques racistas dos colegas do Colégio Franco-Brasileiro, na Zona Sul do Rio, dá a dica:

— Esses ataques realmente deixam marcas na memória, mas eu gosto de usar eles como um impulso para continuar estudando e fazendo as minhas coisas porque, querendo ou não, essa é uma sociedade em que pessoas como estas sempre vão existir.

-+=
Sair da versão mobile