Ainda se assiste a um forte enraizamento de figuras consulares no poder em África, daí que seja necessária uma certa contenção discursiva e analítica quanto a estas mudanças.
Por Sérgio Dundão, do PÚBLICO
No dia 11 de Abril de 2019 surgiu a notícia de que o polémico líder do Sudão, Omar Al-Bashir, alvo de uma acusação do Tribunal Penal Internacional (TPI), está a ser forçado a renunciar ao seu cargo por imposição militar. Aproveitando esta ocorrência, sentimos a necessidade de reflectir sobre os ventos de mudança que estão a varrer os líderes autoritários africanos, provocando, por conseguinte, o derrube do Presidente argelino Abdelaziz Bouteflika (20 anos no poder) e o Presidente do Sudão, Omar al-Bashir (quase 30 anos no poder). Se estamos a observar ventos cirúrgicos em alguns países africanos, por que persistem ainda diversas figuras africanas no poder, nomeadamente os presidentes da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang (40 anos no poder), dos Camarões, Paul Biya (36 anos no poder), do Uganda, Yoweri Museveni (33 anos no poder), e o da República do Congo, Denis Sassou Nguesso (22 anos no poder)?
Neste contexto de mudança, três dos cinco dos mais antigos presidentes africanos, nomeadamente Denis Sassou Nguesso, Paul Biya e Yoweri Museveni, mantêm-se no poder. Um grupo que em 2017 deixou de contar com os presidentes Robert Mugabe (30 anos no poder, no Zimbábue) e José Eduardo dos Santos (38 anos no poder, em Angola). Em suma, ainda se assiste a um forte enraizamento de figuras consulares no poder em África, daí que seja necessária uma certa contenção discursiva e analítica quanto a estas mudanças. Porque muitas destas alterações na hierarquia do Estado podem não significar uma modificação na praxis política africana.
Por exemplo, as saídas de Robert Mugabe e de José Eduardo dos Santos não representaram uma alternância de poder, mas sim uma mudança de figuras políticas na hierarquia do Estado e do partido, o que se traduz na prática numa sucessão interna ao nível dos partidos dominantes, nomeadamente da ZANU-PF (União Nacional Africana do Zimbábue – Frente Patriótica) e do MPLA, respectivamente.
Este acto de substituição da figura política proeminente é, muitas vezes, desencadeado pelo órgão ou instituição de poder (exército ou partido). Por exemplo, nos regimes autoritários sultanistas, utilizando a tipologia de Max Weber, o exército actua como actor regulador e garantidor do poder do Presidente, porque o Presidente ascendeu por via de um golpe militar ou com a protecção dos militares, pelo que se estabelece, desde logo, uma relação de dependência política do Presidente face aos militares. Assim, quando o Presidente deixa de contar com o apoio dos militares acaba por ficar sem essa protecção. Por outro lado, são de assinalar, igualmente, os casos em que os partidos asseguram o poder do líder e chefe máximo, cabendo ao próprio partido retirar essa protecção e promover essa substituição de poder.
Normalmente, estes agentes de mudança só actuam quando sentem que a autoridade dos presidentes está em decadência e a sua imagem pública fortemente desgastada pelo longo reinado. Neste ensejo, torna-se importante promover uma substituição política para a manutenção da ordem autoritária e ganhar um novo fôlego político. Por isso, o sacrifício do líder é um acto estratégico para evitar uma escalada de protestos em massa susceptível de gerar uma ruptura política, utilizando a tipologia de Juan Linz. Ao mesmo tempo, cria-se um novo espaço de esperança e dá-se uma distensão da pressão social que paira sobre o regime autoritário.
Esta modalidade de alternância ou de substituição dos líderes políticos não constitui, em si, uma novidade na realidade africana, como descreveu o cientista social senegalês Mamadou Diouf. Por isso, estamos cientes, por exemplo, que estas alterações são provocadas por agentes da mesma estrutura de poder e que, em consequência deste facto, os novos líderes, muitas das vezes, fazem parte da anterior estrutura de poder. O que comporta, desde logo, a manutenção de muitas das teias de influência e de poder do ancien regime, sendo uma prática recorrente nos regimes neopatrimoniais africanos.
Os novos líderes não dispõem das mesmas condições sociais, económicas e políticas que os anteriores regimes. Fazendo, por isso, dos seus discursos um elemento político essencial da sua acção, cuja tónica reside no combate à corrupção, observada como a praga social que afecta a realidade africana e promove o atraso destas sociedades. Deste modo, conseguem criar uma imagem nova e o seu discurso está em plena concordância com os grupos da sociedade civil, recebendo, por conseguinte, um forte apoio social.
Negligenciando, no entanto, que a própria corrupção resulta de uma articulação política e económica das elites africanas com outras elites ocidentais, e não só, não sendo uma excepcionalidade africana. Por isso, transformar o combate à corrupção numa excepcionalidade africana e num elemento político essencial para a salvação das sociedades africanas acaba por ser redutor e, podendo ser politicamente ineficiente, constituir um sério risco para o novo líder. Porque, em caso de fracasso deste combate, o líder acaba por cair em descrédito social e perder a base de apoio inicial, deixando, portanto, de ter a capacidade política para implementar a tão almejada transformação social e política que possa trazer o desenvolvimento aos povos.
Assim, defendemos que não se deve criar uma leitura precipitada de uma prática rotineira na realidade africana ao nível da substituição das lideranças. Por isso, mantém-se intacta a dúvida interpretativa sobre o rumo dos ventos de mudança em África.