No jogo da fé, um Jesus onipresente entra em campo

Evangélicos dominam elite do futebol e os poucos jogadores que não rezam pela cartilha sofrem racismo religioso

“Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé/Eu respeito seu amém/Você respeita o meu axé.” (Samba-enredo da Grande Rio em 2020).

Os indicadores apontam para o céu na celebração dos sucessos em campo — do gol ao título, da vitória à defesa improvável. Os objetivos alcançados se explicam, nas entrevistas, por um único nome: Jesus. O filho do Criador entra em campo todo dia, toda hora, no futebol brasileiro dominado pelos evangélicos, a maioria neopentecostal. Na elite boleira, parece religião única, que alcança as divisões de base dos clubes e influencia a formação dos jogadores.

O Datafolha estima que o rebanho evangélico soma 30% dos brasileiros. No futebol, fica muito maior especialmente entre as estrelas — de Neymar “100% Jesus” a Gabigol, de Felipe Melo ao goleiro Fábio, de Cássio a Firmino, de Leandro Castan a Daniel Alves, os novos atletas de Cristo dão goleada tão massacrante que inspiraram até esquete(Treinamento, do Porta dos Fundos).

— A cosmologia pentecostal tem afinidade muito grande com o neoliberalismo, valorizando meritocracia, esforço individual, obediência, foco e determinação. Os jogadores de futebol são a materialização desses valores e, em contrapartida, atribuem seu sucesso a Deus. Puro suco de pentecostalismo — diz Livia Reis, pesquisadora do Museu Nacional e do Iser, o Instituto Superior de Estudos da Religião.

Lívia explica que as igrejas apostam muito no esporte para manter a juventude nos templos, longe das ruas onde estão “os demônios”. Denominação mais famosa, a Igreja Universal do Reino de Deus promove campeonatos que mobilizam centenas de meninos. Ela alerta que a massificação produz, no ambiente profissional, uma mazela grave: o racismo religioso.

‘Sempre foi Exu’

“Nunca foi sorte, sempre foi Exu. Laroyé!”, postou Paulinho, revelado pelo Vasco e hoje no Bayer Leverkusen, em seu Instagram (487 mil seguidores), para festejar a convocação para a seleção olímpica, após se recuperar de grave contusão. Imediatamente, muitos intolerantes atacaram o filho de Oxóssi, o orixá caçador.

— Sou muito agarrado à minha fé. Minha família sempre teve muita conexão com o candomblé e a umbanda. Quando comecei a entender, gostei muito dessa filosofia de vida — diz, lamentando o preconceito nas redes. — Evito focar nesses comentários, que vêm da ignorância, da falta de informação.

Perto de completar 21 anos, Paulinho garante nunca ter sofrido assédio de jogadores ou pastores evangélicos.

— Para mim, o candomblé é natural, sou eu. Não dou oportunidade para brincadeiras ou manifestações de preconceito no trabalho.

A filosofia do atacante carioca da seleção olímpica leva uma goleada do materialismo desenfreado no futebol, “puro suco” de teologia da prosperidade, doutrina religiosa que defende a bênção financeira como desejo divino para os cristãos. Criada nos Estados Unidos na década de 1950, interpreta a Bíblia de maneira não tradicional, como um contrato entre Deus e os humanos — e combina à perfeição com o projeto de riqueza súbita dos candidatos a craque.

A contaminação chega aos torcedores, que patrulham jogadores nas redes. Volante revelado pelo Bahia, Feijão, 27 anos, sofreu pesado preconceito, em 2017, quando reverenciou Ogum, o orixá guerreiro, em seu Instagram. Nos treinamentos e vestiários, alguns colegas, naquela fronteira entre a brincadeira e a conversa séria, pediram para ele não fazer trabalhos que causassem contusões entre os rivais na luta por posição.

— Pensam que a religião faz mal a alguém. Muita ignorância. Sou do candomblé desde a barriga da minha mãe e queria expor minha fé desde novo. É minha proteção, minha saúde — resume ele, hoje sem clube. —No futebol, tem muita gente de axé, que prefere ficar quieta para não se expor.

O pastor batista Henrique Vieira entende o cenário religioso do futebol como reflexo da sociedade. Sobre as vitórias esportivas, garante: Jesus não entra em campo.

— É bizarro atribuir êxito futebolístico à religião. O evangelho, em mim, gera respeito pelo derrotado na disputa — pondera ele, torcedor do Flamengo. — A teologia da prosperidade é diabólica, porque representa a riqueza individual, o contrário da partilha que Jesus pregou. O evangelho é radical, defende que se abra mão do acúmulo para a pobreza desaparecer.

Ele critica a cruzada dos evangélicos para aumentar o time dos fiéis.

— Tenho medo de um Brasil cristão no formato que se desenha. Na nossa sociedade estruturalmente racista, crescem o fundamentalismo religioso, com agressão e repressão a religiões de matriz africana. É uma violência simbólica importante —analisa, sublinhando que o cristão não tem de ser garoto-propaganda de uma denominação, nem constranger outras pessoas a entrar para uma igreja. —O problema está na construção hegemônica do cristianismo. Seja 100% Jesus nas atitudes, não numa faixa na cabeça — prega, em referência ao adereço de Neymar na festa do título da Champions do Barcelona, em 2015, e no ouro olímpico no Rio.

Atletas de Cristo

A cruzada evangélica começou a se estruturar no meio da década de 1980, com os Atletas de Cristo, associação liderada pelo goleiro João Leite (ex-Atlético-MG) o “artilheiro de Deus” Baltazar (ex-Grêmio e Fla) e o lateral (hoje técnico) Jorginho. Espalhou-se por todos os times, até na seleção. Ficaram famosos, nas Copas de 2006 e 2010, os cultos na concentração, liderados por Zé Roberto e Lúcio, entre outros. Mesmo quem não tinha religião era constrangido a participar. A prática chegou ao campo na África do Sul em 2009, quando a conquista da Copa das Confederações foi celebrada com ardente oração no gramado.

Muitos jogadores viram pastores ainda durante a carreira, como o atacante Ricardo Oliveira, líder por vários times onde jogou. (Ele e Zé Roberto foram procurados pela reportagem, mas escolheram o silêncio.) Muitos divulgam sua fé nas redes sociais, compondo panorama que impressiona pelo fervor.

— O mercado de fiéis invadiu o futebol — aponta Luiz Antonio Simas, historiador ligado aos temas populares. — Construiu-se uma ideia de sociabilidade pela fé que constrange os não evangélicos. A solidão dos jogadores favorece o discurso que acaba na propaganda, da oração em campo, do oferecimento das conquistas a Jesus. Um totalitarismo que é microcosmo da sociedade brasileira.

Filha de Ogum e torcedora do Corinthians, a filósofa Sueli Carneiro compara o futebol aos presídios, pela conversão evangélica. No esporte, a prosperidade dos astros serve de propaganda para a fé.

— Os meninos não são preparados para enfrentar o assédio. É uma estratégia de doutrinação com objetivos muito claros, que vive da renúncia ao pensamento, abdica da razão.

Eu ouvi amém?

* Aydano André Motta é jornalista. A série #nuncaésóesporte será publicada quinzenalmente, às segundas-feiras.

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