Projeto social em favelas do Rio consegue reduzir mortes por Covid em 61% em um ano

Parceria com Fiocruz e ONGs envolve testagem em massa, oferta de comida, teleconsultas e comunicação contra fake news

Com testagem em massa, teleconsulta, alimentação para quem precisa ficar isolado, kit de higiene e comunicação para combater as notícias falsas, um projeto social conseguiu reduzir em 61% as mortes por Covid-19 na Maré, um complexo com 16 favelas no Rio do Janeiro, com cerca de 140 mil moradores.

Em julho de 2020, a mortalidade de infectados por Covid na região era de 148 óbitos por 100 mil habitantes. Em maio último, fechou em 57 por 100 mil. No mesmo período, a cidade do Rio passou de 115 mortes por 100 mil para 233 por 100 mil, um aumento de 43%.

Criado há um ano por pesquisadores da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e ONGs, com recursos do Instituto Todos pela Saúde, do Itaú-Unibanco, o Conexão Saúde é considerado um modelo de sucesso de como a pandemia poderia ter sido controlada, inclusive nas áreas mais vulneráveis, com políticas baseadas em ciência e ações coordenadas entre os governos federal, estadual e municipal.

Centro de testagem da Covid-19 do projeto Conexão Saúde, no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro – Douglas Lopes/Divulgação

“O SUS tem uma capilaridade muito grande, mas não foram criadas boas estratégias para o controle da pandemia, envolvendo a atenção primária à saúde, por exemplo. Perdemos um enorme tempo com essa discussão bizarra de tratamento precoce, mesmo entre a turma da ciência”, diz o infectologista Fernando Bozza, pesquisador da Fiocruz e um dos coordenadores do projeto.

O Conexão Saúde começou com uma junção de várias ações. Logo no início da pandemia, a Redes da Maré, uma ONG que atua há 13 anos na região, começou a distribuir cestas básicas às famílias mais vulneráveis.

“A gente viu que, junto com a insegurança alimentar, pessoas relatavam sintomas da Covid, mas não tinham acesso à testagem ou ao atendimento médico, porque tinham medo ou porque o sistema estava muito desorganizado”, conta Luna Arouca, da ONG Redes da Maré e uma das coordenadoras do Conexão Saúde.

A ONG procurou a Fiocruz, que já estudava a questão da pandemia nos locais mais vulneráveis. Ao mesmo tempo, uma outra ONG, a Dados do Bem (que desenvolve aplicativos de testagem e trabalha com análises de imunidade), a SAS Brasil (empresa de telessaúde) e outros parceiros também aderiram ao projeto.

“Havia o conceito de que os moradores de favelas não podiam ficar isolados pelas condições de habitação, da quantidade de moradores por cômodo. A gente mostrou que isso não é verdade. Dá para ficar isolados de forma segura, desde que existam as condições adequadas para isso”, diz Bozza.

Para o pesquisador, uma das maiores conquistas do projeto foi olhar para comunidade e trabalhar junto com ela no desenvolvimento de estratégias de comunicação qualificada para o controle da pandemia.

“As campanhas de saúde se comunicam muito mal com a população. Com tantas fake news circulando, é fundamental ter informação qualificada como a de grupos que já fazem comunicação nas diferentes redes sociais da comunidade, no Instagram, em podcasts e no TikTok. Temos um tiktoker na favela, o Raphael [Vicente], com 1,8 milhão de seguidores.”

Além das várias ações de comunicação lideradas pelos próprios moradores, o projeto se ancora em três outras frentes: testagem gratuita para a Covid, atendimento médico e psicológico virtual e auxílio de alimentação e higiene para garantir o isolamento de infectados.

O Conexão Saúde já realizou mais de 25 mil testes sorológicos e de PCR, com 16% de positividade. Até o último dia 14, somava 4.201 atendimentos médicos e 1.792 psicológicos. Os exames são feitos em um centro de testagem montado na Maré, interligado ao laboratório da Fiocruz. Os resultados saem em 24 horas.

Numa pandemia como a de Covid não adianta fazer a testagem e o resultado sair cinco, dez dias depois, ir para o sistema de notificação e o cidadão que está na unidade de saúde só saber do resultado após duas semanas. Isso não gera uma ação

Fernando Bozza, pesquisador da Fiocruz

sobre a importância de de resultados rápidos

Se o teste der positivo para a Covid, começa uma série de outras ações para monitorar a saúde do infectado e conter a disseminação da doença. Os demais moradores da casa também são testados.

A doceira Tatiana Silva de Lima, 40, foi uma das beneficiadas do programa. Em março último, o filho Victor Hugo, 14, teve o diagnóstico positivo de Covid um mês depois do início das aulas presenciais. “Primeiro ele teve dor de cabeça, depois, diarreia e, por último, não sentia mais sabor na comida”, conta.

A mãe procurou o projeto e ambos fizeram o teste de Covid. O do filho deu positivo, o dela, não. “Mesmo assim bateu um desespero porque cuido da minha avó acamada, muito doente.”

Duas horas após o resultado positivo do filho, Tatiana diz que foi procurada por uma assistente social e acolhida no programa. Recebeu um kit de higiene com cloro, álcool em gel, luvas e máscara, além de três refeições por dia (almoço, lanche e jantar) para ela e para o filho, durante todo o período de isolamento do garoto. Nem ela nem a avó foram infectadas.

“O que mais impressionou nem foi a comida, que era ótima, bem temperada. Foi que todos os dias alguém entrava em contato para saber como estavam os sintomas. Isso deu uma segurança muito grande”, afirma.

Segundo Luna Arouca, da ONG Redes da Maré e uma das coordenadoras do Conexão Saúde, essa parte mais humana do projeto é o que mais os moradores destacam na avaliação do programa.

“Com o fato de ligar todos os dias para saber como as pessoas estão, levar os insumos que elas precisam, oferecer atendimento médico e psicológico, elas se sentem cuidadas, sabem que têm uma referência, alguém se preocupando com elas.”

Ela afirma que, embora o contágio da Covid ainda esteja ocorrendo, uma vez que é quase impossível evitá-lo numa comunidade tão grande e com tanta circulação, o fato de reduzir as mortes já é um grande êxito.

Para Eliana Sousa Silva, diretora da ONG Redes da Maré, mesmo com todos os resultados positivos do projeto, todo o processo exige políticas públicas de saúde, educação, emprego, saneamento básico e segurança pública, entre outras voltadas à comunidade.

“Sem isso, há uma fragilidade muito grande. A gente nem consegue avançar para outros campos porque as pessoas não têm o básico, como acesso a alimentos.”

Luna Arouca reforça. “São questões estruturais históricas que a gente não tem condições de responder sem políticas públicas permanentes. Muitas vezes o poder público deixa de fazer o seu trabalho porque diz que o lugar é violento, não tem condições. Mas a gente mostra que sim, é possível fazer algo bem feito, qualificado, e entregar um serviço de qualidade.”

O projeto deve ganhar novas frentes com a chegada de mais parceiros. Uma delas será o acompanhamento de mulheres impactadas pela pandemia por perdas de familiares e/ou de renda.

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