O aceno da utopia

Num dia histórico, a Maré marchou por ruas e vielas e preencheu com flores buracos de balas

Por FLÁVIA OLIVEIRA, do O Globo 

 

Foto: Marta Azevedo

O grupo de líderes comunitários, moradores e ativistas partiu da Praça do Parque União e serpenteou ruas e vielas por hora e meia, até alcançar a comunidade da Nova Holanda pela Rua Principal. Ali, no cruzamento seguinte ao Ciep Samora Machel — nome do líder da guerra de independência e primeiro presidente de Moçambique — encontrou os manifestantes que partiram do Conjunto Esperança, passaram pela Vila do João, pela Vila do Pinheiro e chegaram à Baixa do Sapateiro. O ato no quarteirão conhecido como Faixa de Gaza, tamanha a frequência e a intensidade dos confrontos armados, foi inédito. Cerca de cinco mil pessoas — homens, mulheres, jovens e crianças — se reuniram de forma pacífica, ordenada e emocionada para pedir paz e propor ao Rio de Janeiro uma política de segurança pública que preserve vidas. De janeiro a março, a violência deixou 13 mortos e 16 feridos na Maré, o conjunto de 16 favelas que se estende do Caju à Praia de Ramos, limitado pela Avenida Brasil e pela Linha Vermelha, duas artérias do tráfego na Zona Norte carioca.

Faz três meses que entidades locais começaram a articular, por meio do Fórum Basta de Violência! Outra Maré é Possível, a marcha que fez do 24 de maio de 2017 um dia histórico. Reuniões preparatórias foram realizadas para planejar o percurso e mobilizar moradores; pessoas influentes na cidade e instituições civis de fora da favela foram chamadas a participar. E compareceram. Artistas como Patrícia Pillar, Betty Gofman, Paula Burlamaqui, Mariana Lima, Enrique Diaz, Caio Blat e Igor Angelkorte caminharam ao lado de Átila Roque (ex-Anistia Internacional Brasil, hoje na Fundação Ford), Silvia Ramos (CESeC), Jailson de Souza e Silva (Observatório de Favelas), nomes relevantes do debate sobre políticas públicas e segurança.

O percurso começou com participação tímida do povo da Maré. Muitos moradores assistiam da porta de casa, das janelas e da entrada das lojas à passagem dos manifestantes, boa parte vestiu-se de branco, carregou flores e exibiu cartazes com as palavras paz, viver ou com as expressões Basta de Violência, Marcha da Maré. Aos poucos, os locais foram engrossando o movimento, que recebeu a adesão da campanha Instinto de Vida. Recém-lançada por um conjunto de organizações de sete países latino-americanos, Brasil entre eles, a ação pretende reduzir em 50% o número de homicídios, no prazo de dez anos. No país, são quase 60 mil por ano; no Rio, 10% disso. Em 2016, o Instituto de Segurança Pública contabilizou 6.248 mortes violentas (homicídio, latrocínio e lesão corporal seguida de óbito) no estado. Na Maré, 17 pessoas perderam a vida apenas em decorrência de intervenções policiais, escolas e postos de saúde deixaram de funcionar por 20 dias.

“Precisamos trabalhar a letalidade, temos de diminuir o número de mortes. Vamos continuar dialogando com moradores para construir uma proposta consistente e apresentá-la ao poder público em momento oportuno. A marcha de hoje fez moradores da Maré e de outras áreas da cidade se encontrarem num lugar que as pessoas não frequentam. Aquela divisa foi ressignificada. Isso, do ponto de vista simbólico, foi muito importante”, festejou Eliana Souza Silva, diretora da ONG Redes da Maré, uma das organizadoras do ato.

O saldo simbólico estava estampado no rosto de Dona Guiomar, 76 anos de idade, 53 de Maré. Ela sorria e cumprimentava a horda de visitantes, enquanto procurava dois netos misturados à multidão. “Nunca vi tanta gente aqui. Nunca vi assim. Tá bonito, tomara que dure”, desejou.

Os sinais de que outra Maré é possível — assim como outro Rio, outro Brasil — eram visíveis também na presença de crianças, vestindo uniforme escolar e empunhando cartazes com mensagens de paz. E na silenciosa instalação que tudo disse. No pequeno prédio na esquina do espaço cotidiano de confronto armado, os buracos de balas foram preenchidos com flores. A Maré, ontem, nos acenou com a utopia. Foi bonito de ver. E sonhar.

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