O algoz não vai ter mais razão

Há um desespero cômico naqueles que não falam mais sozinhos e são obrigados a aceitar outras vozes

Por Djamila Ribeiro Do Carta Capital

Assistimos a um verdadeiro show de demonstração de desespero de homens brancos nos últimos tempos. Alguns pequenos avanços no que diz respeito a um maior acesso de mulheres e homens negros a alguns espaços desencadearam uma reação no mínimo engraçada.

São textos, artigos e livros, sem base alguma, somente com o intuito de se colocarem como vítimas de “feministas raivosas linchadoras”. Todo mundo sabe que para falar de algo é preciso conhecer.

Existe o princípio básico da honestidade intelectual. Mas, para contrapor epistemologias feministas ou negras, esses homens julgam poder falar sem saber, pois, ora, são homens brancos, logo pensam e existem.

Foi lançado, recentemente, um livro no qual o autor se pensa corajoso por criticar os ditos excessos dos movimentos “identitários”. Coragem, dizia Kant, não é uma qualidade moral, um assassino pode ter a coragem de matar uma mulher que não o quis mais.

Nesse sentido, qual a coragem em focar a sua visão superficial em grupos que lutam para conquistar suas humanidades do alto de seu apartamento no Leblon? Qual o ponto em se colocar como forasteiro por debater esses temas, quando a maior parte dos estudos sobre a questão racial no Brasil foi produzida por brancos?

Por mais que tenhamos estudos importantíssimos realizados por negros nesse sentido, é sabido que, historicamente, a população negra não acessou espaços de produção de saber e que esses estudos seguem sem legitimação.

Realmente, acredito que existem comportamentos e estratégias excessivas por parte de algumas militâncias, mas estes jamais podem ser comparados ao fato de poder morrer por ser quem se é.

Em um país em que a cada cinco minutos uma mulher é agredida pelo companheiro, que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, nossa postura ética deveria ser a de pensar saídas para isso e não seguir pulando corpos se autointitulando o que não se é. Esse homem seguirá criticando os supostos excessos na segurança que o mundo lhe confere pela identidade que carrega.

Homens brancos são os donos dos meios de produção, a maioria de professores universitários, publicados por grandes editoras, qual o papel de forasteiro aqui? Homem branco é a norma, não tem nada de forasteiro e de mais “identitário” do que isso. Um grupo que governa para si e se vitimiza quando é obrigado a coexistir com outras vozes.

É isso o que a gente busca: coexistir. Mulheres negras não possuem poder institucional algum para proibir homens brancos de falar. Nem estrutural. O que pleiteamos quando pensamos lugares de fala é que existam vozes múltiplas e não mais a imposição de uma voz.

Patricia Hill Collins, intelectual estadunidense, afirma que o local em que as mulheres negras ocupam no movimento feminista é o de “forasteira de dentro”. Por estar e ao mesmo tempo não estar, entende esse lugar como um espaço de fronteira ocupado por grupos com poder desigual, pois, ao mesmo tempo que essas mulheres estão em algumas instituições, não são tratadas como iguais.

Logo, é extremamente desonesto um homem branco valer-se desse conceito para si, quando ele é a norma. Esse homem branco publicou o seu livro num país que quase não publica negros. Qual o ponto de ser forasteiro? Ele só é mais um “de dentro”.

Outro absurdo e violência é se dizerem linchados, quando sabemos que o próprio nome linchamento vem da Lei de Lynch, famoso por castigar negros escravizados. Um menino negro que rouba algo pode ser amarrado em poste e linchado, como aconteceu várias vezes no Brasil.

Um homem branco, não. Ou alguém cogitou linchar Eduardo Cunha, Michel Temer e outros? O que eles chamam de linchamento é a necessidade de se confrontar com os próprios privilégios, que eles pensavam providencialmente fixados e não frutos de opressão de outros grupos.

O cineasta Cacá Diegues, em um artigo raso para a Folha de S.Paulo, disse “lugar de fala é uma bobagem universitária”.

E poderia ter terminado assim: “Assinado, o homem branco”. Há vários estudos sobre o tema, eu mesma acabo de lançar um livro a respeito, mas ele diz que é bobagem sem ter lido e partindo de um entendimento errôneo de que lugar de fala é proibir outros de falar, quando é justamente o contrário.

Se eu afirmasse que um conceito é uma bobagem, porque eu disse e minha mãe disse que é verdade, como reagiriam? Eu sou acadêmica, sei muito bem que precisamos estudar nosso objeto de crítica, mas Cacá Diegues afirma por achar que pode, pois foi criado para se julgar o centro do universo.

Todas essas atitudes mostram o desespero do homem branco em não ser mais único, de precisar se confrontar com as verdades e conhecimentos daqueles que ele categorizou como “outros”.

Só que agora, na trilha de luta de quem os antecedeu, esses outros entenderam a necessidade de definir a si mesmos, como nos ensina Collins, de reconfigurar o mundo por outras perspectivas, olhares, saberes. Entendemos que o algoz não vai ter mais razão.

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