O ano em que corremos perigo

Para cada lágrima derramada por luto, medo, desalento, houve um abraço, um olhar solidário

Por FLÁVIA OLIVEIRA, do O Globo 

Foto: Marta Azevedo

Chega ao fim o ano em que corremos perigo. Não foi fácil defender a democracia, o meio ambiente, os povos indígenas, os quilombolas, a cultura, a liberdade religiosa. Nada trivial combater o racismo, denunciar crimes de ódio, gritar contra o feminicídio, dar nome à sistematização da brutalidade e do extermínio de corpos negros e pobres (é necropolítica que chama). Num retrocesso civilizatório, foram postas à prova agendas supostamente tão óbvias quanto asseguradas, posto que integram o rol de 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 71 anos neste dezembro. A resiliência do estado democrático de direito vem sendo impiedosamente testada. Se algo de bom há no embate, é a disposição para a resistência. Misturam-se cansaço e alívio. Houve luta. Haverá.

Em 2019, para cada mulher ameaçada, agredida, executada, formou-se uma teia de indignação e cobrança por justiça. Para cada criança assassinada, comoção e protesto, ainda que insuficientes. Na leitura mais triste da temporada de Natal, a entrevista a Carolina Heringer, do GLOBO, na qual Vanessa Félix conta que trocou de lugar com a filha, Ágatha, minutos antes de ela ser alvejada dentro de uma van, no Complexo do Alemão: “Era para ser eu. Mas, se eu morresse, a repercussão jamais seria essa. O propósito era acontecer isso com ela, para acabar com essa política de extermínio”. A menina de 8 anos teve a vida abreviada por um tiro disparado por um cabo da PM já denunciado por homicídio duplamente qualificado.

Armas de fogo provocam sete em cada dez assassinatos no Brasil, mas o presidente da República gastou parte do primeiro ano no Palácio do Planalto para flexibilizar, por decreto, o acesso a revólveres, pistolas e até fuzis. O Anuário Brasileiro da Segurança Pública já tinha apurado salto de 42% nos registros de novas armas pela Polícia Federal e pelo Exército em 2018, 196.733 ao todo. Nos meses seguintes à mudança nas regras, o total de autorizações pela PF quase dobrou: da média mensal de 3.455, até maio, para 6.244 em junho, julho, agosto, segundo reportagem de Marco Grillo no GLOBO.

São instrumentos letais que assombrarão a sociedade brasileira durante ao menos três décadas, dada a durabilidade de uma arma de fogo. Mas não faltaram especialistas nem instituições a lembrar que segurança pública é dever do Estado, não de indivíduos. E alertar sobre a correlação entre posse de armas e suicídios, homicídios e violência de gênero: uma aumenta, os demais acompanham.

No Estado do Rio, em 11 meses, 1.686 pessoas morreram em decorrência de intervenção policial, alta de 16,6% sobre um ano antes. A sociedade civil denunciou em cortes internacionais a política de enfrentamento do governador Wilson Witzel. Os feminicídios saltaram 24% no estado; em novembro, houve 13 casos, recorde desde que o crime passou a ser oficialmente contabilizado, em 2016. A Alerj abriu o ano legislativo com CPI sobre o tema; grupos feministas alertaram sobre o risco para mulheres com a facilitação do acesso a armas de fogo; em outubro, a Lei Maria da Penha foi alterada para permitir a apreensão de armas de agressores em episódios de violência doméstica. A opinião pública se insurgiu contra as operações de repressão que levaram à morte de nove jovens num baile funk em Paraisópolis.

Nunca tantos terreiros de umbanda e candomblé foram atacados. No Rio, a Comissão contra Intolerância Religiosa contabilizou 200 casos até julho, dobro do ano anterior, a maioria na Baixada Fluminense. Depois da perseguição histórica pela Igreja Católica, pelo Estado, pela polícia, por líderes de denominações neopentecostais, os cultos de matriz africana enfrentam a brutalidade do crime organizado. O Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap) republicou o “Guia de luta contra a intolerância e o racismo” de Jorge da Silva, cientista político e ex-chefe do Estado Maior da PM; o Ministério Público Federal lançou estudo em que atesta o recrudescimento da violência, a despeito do arcabouço legal, da Constituição à Lei Antiterrorismo. Na madrugada da véspera de Natal, extremistas atacaram a sede da produtora Porta dos Fundos, em reação ao especial de fim de ano em que humoristas apresentam um Jesus gay.

A reforma da Previdência passou sem tunga ao Benefício de Prestação Continuada, que alcança idosos em pobreza extrema. Do pacote anticrime do ministro Sergio Moro, da Justiça, foram retirados o excludente de ilicitude e o plea bargain, mecanismos que levariam ao aumento dos assassinatos por agentes da lei e do encarceramento em massa. O Congresso há de retirar a taxação do seguro-desemprego para cobrir o programa de estímulo à contratação dos jovens. Fernanda Montenegro encarnou a defesa da arte e da cultura; estudantes marcharam contra o contingenciamento de verbas da Educação. Para cada ameaça aos direitos, uma reação —nem sempre vitoriosa, porque quilombolas foram desprezados no acordo sobre a Base de Alcântara, indígenas executados; e a floresta ardeu em chamas. Mas para cada lágrima derramada por luto, medo, desalento, houve um abraço, um olhar solidário. Em 2019, estivemos juntos. Estaremos em 2020.

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...