“O Brasil é um país racista envergonhado”

“Não que a pessoa seja racista 24 horas, ela não é de um grupo de intolerância, que perpetua e divulga sua ideologia para angariar outras pessoas no mesmo sentido. A coisa do racismo está embutida na cabeça do brasileiro. O Brasil é um país racista envergonhado.”

Foto: Flávio Florido

Por Leonardo Sakamoto,  do Blog do Sakamoto 

 

Não, as declarações não vêm de nenhum sociólogo maluco, historiador comunista ou jornalista destemperado que tem um blog sobre direitos humanos. Elas vêm de Nelson Collino Júnior, chefe dos investigadores da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi). Fazem parte de boa reportagem de Guilherme Azevedo, aqui do UOL, que mostra que negros e nordestinos são as principais vítimas de discriminação em São Paulo segundo a polícia.

De acordo com a reportagem, as denúncias de casos de intolerância usando o Facebook são as mais numerosas, seguidas pelo Twitter e o Instagram. De acordo com Daniela Blanco, delegada titular do Decradi, as pessoas acham que, por serem crimes cometidos pela internet, a investigação não chega até elas. O que é um engano.

Toda vez que abrimos a discussão sobre o racismo no Brasil, alguém diz que isso é um absurdo, que é história de quem quer dividir o país, que todos já são iguais perante à lei, que a reclamação é mimimi de vagabundo. Isso me leva a discordar de Collino Júnior. Nem sempre o Brasil é um país racista envergonhado. Não raro, o racismo é escancarado e exposto com os dentes à mostra em praça pública, em veículos de comunicação, em escolas, em estádios de futebol.

Há também quem responda isso com a provocação: “Ah, mas você nunca discriminou alguém?” Como se a previsível resposta afirmativa nivelasse tudo e garantisse que, dessa forma, as coisas permaneçam como sempre estiveram.

Mas o que fazer da constatação de nossos preconceitos? Assumir um comportamento medíocre e covarde diante de nossa ignorância, por toda a vida, rangendo os dentes frente à possibilidade de conhecer melhor o outro e mudar a si mesmo?

Ou entender que estamos em um processo de constante aprendizado e que uma das coisas mais bonitas pela qual podemos passar é perceber a nossa incompletude, entender o que tememos no outro e buscar tolerá-lo ou, quiçá, amá-lo?

O processo de desconstrução de preconceitos e conscientização pode levar uma vida toda – falo isso por experiência própria, pois faço parte da mesma sociedade. E ele começa por reconhecer o problema em si mesmo e na sociedade.

Ao me relacionar com as outras pessoas, não faço isso sozinho, mas me acompanham séculos de acomodação cultural, de preconceitos e medos dos que vieram antes de mim. Não só a genealogia pesa sobre os ombros, mas também a história e as condições sociais do país. De certa forma, na fala do “agora” está presente toda a história humana.

Se uma criança nasce com a pele mais escura que sua família sofre preconceito da sociedade mesmo que seus pais não tenham sofrido. Se for pobre, pior ainda. Tomando como referência a média salarial, os valores pagos para uma mesma função na sociedade coloca, em ordem decrescente: homem branco rico de um lado e mulher negra pobre do outro.

Para muita gente, basta saber que a outra é negra. Ou nasceu no Nordeste.

A Justiça que se pretende ao tentar reconstruir a sociedade por um novo viés não é apenas a de saldar a dívida de uma escravidão mal abolida e da histórica discriminação regional, mas sim a tentativa de mudar o pensamento e a ação de uma sociedade que trata as pessoas de forma desigual por conta da cor de pele ou por seu sotaque.

Ir contra a programação que tivemos a vida inteira, através da família, de amigos, da escola, da mídia e até de algumas igrejas em que pastores pregam que “africanos são amaldiçoados por Deus” é um processo longo pelo qual todos nós temos que passar. Mas necessário.

Como já disse aqui, todos nós, nascidos neste caldo social somos potencialmente idiotas a menos que tenhamos sido devidamente educados para o contrário. Pois os que ofendem de forma tão aberta só fazem isso por estarem à vontade com o sentimento de anonimato (Hanna Arendt explica) e se sentirem respaldados por parte da sociedade. Anonimato que, como disse a delegada, não resiste a uma investigação.

Toda a vez que trato desta questão no blog, sou linchado. Pois, como todos sabemos, não há racismo no Brasil. “Isso é coisa de negro recalcado.” Ou preconceito regional? “Nordestino não gosta de trabalhar e fica contando mentira.” Ou exploração sexual de crianças e adolescentes. “As meninas é que pedem e depois a culpa é dos homens?” O machismo? Uma mentira “criada por feminazis para roubar nossos direitos”. E a homofobia, uma invenção “daquela bicha do Jean Wyllys”.

Não há genocídio de jovens pobres e negros das periferias. “Eles é que estão no lugar errado e na hora errada, pois os ‘homens de bem’ seguem a lei e nada acontece com eles.”

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