O Brasil não conhece o Brasil

“Quero ver o Brasil em cena, a gente precisa se reconhecer”. Com estas palavras o dramaturgo, ator, cantor e compositor Rodrigo Jerônimo, 34, define o principal objetivo da mostra de arte negra “Aquilombô”, cuja programação se estende deste quarta-feira (2) até 13 de agosto, com diversas apresentações. Aliás, diversidade é a palavra que rege o discurso do entrevistado. “A maioria da nossa população é autodeclarada negra e a gente não se vê no palco, como não vê índio, mulher, gay, transexual. Quando vamos nos espaços de cultura, reconhecemos a Europa e os países majoritariamente brancos. O grande público não tem acesso a toda essa diversidade brasileira”, sustenta.

Jerônimo subirá ao palco com o espetáculo “Madame Satã”, sucesso de público e crítica na capital mineira desde a estreia, em 2014, e que, recentemente, cumpriu temporada em São Paulo como parte da Semana do Orgulho LGBT na cidade. A saga do capoeirista e dançarino homossexual que inspirou samba de Noel Rosa (“Mulato Bamba”) e longa protagonizado por Lázaro Ramos serve como ponto de partida para debater questões atuais. “São reflexões atemporais. O espetáculo foi concebido num momento em que o discurso de ódio e machista foi uma tônica durante as eleições presidenciais e, infelizmente, nós ainda precisamos falar sobre racismo, homofobia, machismo, e, inclusive, a questão indígena, que não é tocada, ela é ignorada por todos nós”, aponta o ator.

Para Jerônimo, o fato de se basear em uma personagem do início do século XX revela o quão preocupante é o panorama para superar demandas urgentes. “Nossa atual situação se parece muito com o Brasil desde que ele foi colonizado, porque antes não era assim, e isso é muito triste, lutamos pelas mesmas coisas há décadas e décadas”, lamenta o artista, que aproveita a brecha para uma brincadeira. “Graças ao ‘Madame Satã’ eu passei de ilustre desconhecido para desconhecido apenas”, graceja.

Luta. Companheira de Jerônimo no palco em “Madame Sata”, a cantora, compositora e atriz Julia Dias, 27, também vai se apresentar com o Coletivo Negras Autoras, ao lado de Elisa de Sena, Nath Rodrigues, Manu Ranill e Eneida Baraúna. Em cena, o segundo espetáculo da companhia, intitulado “Eras”. “É um show totalmente autoral que nasce como desdobramento do nosso primeiro espetáculo, o ‘Negra’, e traz essa especificidade de abranger, além da luta racial, a questão de gênero, o desejo de nós, como mulheres negras, não sermos mais objetos do discurso, mas, sim, sujeitas, dizendo da nossa forma e com a nossa boca”, conceitua a atriz.

O espetáculo tem direção de Grace Passô e preparação vocal a cargo de Fabiana Cozza. Fora a ocupação do espaço cênico, Julia ambiciona outro ponto considerado por ela fundamental na melhoria das condições para artistas negros no país. “Tristemente o Brasil ainda é racista e desigual, e a arte não está alheia a esse cenário, é um problema estrutural que atinge todos os setores da sociedade. Acho que, por vezes, o racismo acontece até de forma inconsciente, por isso é importante ter mais artistas negros como curadores, nos postos de comando e tomando decisões”, observa Julia, que acrescenta outra informação reveladora. “Esse cenário de crise não é novidade para nós, sempre estivemos na luta”, ratifica.

PROGRAMAÇÃO

Dia 2. “Madame Satã”, com o Grupo dos Dez, às 20h

Dia 3. “Memórias de Bitita – O Coração Que Não Silenciou”, com a Cia. Circo Teatro Olho da Rua + “Pé de Amora”, às 20h

Dia 4. “Chão de Pequenos”, da Cia. Negra de Teatro, às 20h

Dia 5. “Imune”, com Rodrigão Negão e Guilherme Ventura, às 20h

Dia 6. “Eras”, com Coletivo Negras Autoras, às 19h

Dia 8. “Kalundú”, com Benjamim Abras, às 20h

Dia 9. “Louvação”, Rodrigo Jerônimo canta Gilberto Gil + Raphael Salles + bate-papo com Rita Gusmão, às 20h

Dia 10. “O Grito do Outro – O Grito Meu!”, com Cia. Espaço Preto + bate-papo com Leda Maria Martins, às 20h

Dia 11. “Imune”, com Batuque Cello, Carla Gomes e Pêlos, às 20h

Dia 12. Peça “Bala da Palavra”

Dia 13. “Imune”, com Maíra Baldaia e Alysson Salvador, às 19h

Onde. Teatro Francisco Nunes (av. Afonso Pena, s/nº, centro, 3277-6325)

Quanto. R$ 10 (inteira)

 

+ sobre o tema

Congresso do CNAB presta homenagem ao autor do Hino à Negritude

Evento acontece no Palácio das Convenções do Anhembi, nos...

Machado e a política

A campanha eleitoral, como outras, tem sido pródiga em...

Hoje na História, 1942, nascia Milton Nascimento

Milton Nascimento (Rio de Janeiro, 26 de outubro de...

Associação pede proibição de cremação de seguidores do Candomblé

Ofício enviado ao MPE/BA e MPF versa sobre mortos...

para lembrar

O primeiro âncora negro de um jornal televiviso na Europa

Quando Harry Roslemack começou a ler o noticiário para...

Beyoncé contrata 200 dançarinos africanos para novo clipe

Beyoncé contratou mais de 200 bailarinos africanos para o...

Do ruivo ao loiro, mulher negra pode aderir a todos os tons

Ser loira ou ruiva é exclusividade de um grupo...
spot_imgspot_img

The Wailers anunciam shows no Brasil em comemoração aos 40 anos do ‘Legend’

The Wailers comemora dois marcos significativos neste ano: o aniversário de 40 anos do álbum Legend, com Bob Marley, e o lançamento da cinebiografia Bob Marley: One Love. Sob...

James Earl Jones, a voz de Darth Vader e de Mufasa, morre aos 93 anos

O ator e dublador James Earl Jones, eternamente lembrado como a voz do vilão Darth Vader, morreu nesta segunda (9) aos 93 anos, em...

Documentário resgata pela oralidade história do movimento Black Rio

Nos anos 1970, o Grêmio de Rocha Miranda, na zona norte do Rio de Janeiro, foi palco de uma revolução cultural que reverbera até hoje...
-+=