O mundo não é somente formado pelo eu, mas é formado com os outros, compartilhamentos intrínsecos que formam um olhar plural para a realidade (HALL, 2006). Bem como a identidade cultural do indivíduo é construída entre o eu e o território, entre o eu e a sociedade, entre o eu e a religião etc, é o que Stuart Hall (2006), chama de “interação”, nesse sentido, o que penso é alterado numa conversa permanentemente com outras culturas que transcende os nossos desejos e o que essas outras culturas trazem para construirmos algo juntos. Na Bahia, especificamente, no Recôncavo da Bahia, instituíram, mesmo com o período de escravidão, tradições seculares e de apoio recíproco, e principalmente identidades resistentes, formadas pelo diálogo coletivo e estratégias para vencerem às lutas. Como reafirma, Hall (2006), foi a partir dessa unificação dinâmica e combativa que todos nós conseguimos diretamente ou indiretamente formarmos não um modelo de identidade eurocêntrica, mas um modelo em que tenha identidades múltiplas, é o que Seu Jorge e Elza Soares etc, chama de “brasis”.
Que é exatamente para compreendermos a diversidade sociocultural brasileira como múltipla e não como única. É nesse contexto que, nas tradições da Bahia, a presença do catolicismo popular é nítido, com suas muitas maneiras de reverenciar em suas casas, os santos populares, “que dialoga com a cultura afrodescendente e católica de maneira estreita e intensa” (NASCIMENTO, 2014, p. 7). Não é como um projeto que separa as raízes ancestrais, mas é acima de tudo, um projeto que tem relações de afeto e fé com as muitas entidades espirituais, de modo muito peculiar e habitual de determinados grupos socias que se agregam para um projeto civilizacional e emancipatório das religiosidades afro-diaspóricas.
Essa mesma práxis resiste no mês de setembro, onde ocorrem diferentes rituais com a forte presença da população, como, por exemplo, o ato de comer o “Ajeum” (comida), em devoção as entidades que são irmãos, São Cosme e Damião. Esses mesmos ritos domésticos, acontecem nos Candomblés da Bahia, onde também são entendidos como “Orisá Ibeji”, essa perspectiva do panteão nagô são considerados como dois irmãos idênticos que carregam em si caminhos de alegrias, e também são compreendidos a partir do útero e da fertilidade do “Orisá Osun” (deusa das águas doces) que, segundos os antigos(as), é a mãe desta duas entidades.
Cada família de Asé (força vital) absorve, interpreta e afirma o seu ponto de vista sobre as entidades: “Erê e Ibeji”, unos ou não, acredito que toda forma de agregar à ancestralidade de forma horizontal é louvável, embora, suas nomenclaturas, conceitos e doutrinas são distintos, mas é algo muito pessoal a forma de se cultuar estas entidades, “portanto, é um culto plural, carregado de muitos signos e sentidos, ora partilhados” (NASCIMENTO, 2014, p. 28 ). As comidas são regadas com bastante “Epó Pupá” (azeite de dendê), como comida principal, “o caruru é um prato tradicional de origem africana que pode ser servido com acarajé e abará. Esse preparo com quiabo e dendê foi trazido pelos escravos para o Brasil. É um prato que faz parte da culinária baiana, reconhecido por demais, bem como uma comida ritual do candomblé e umbanda” (RIBEIRO et al., 2017, p.6).
Os mais velhos(as) sempre afirmam que, tem que ter no Caruru de São Cosme e Damião, comida de fartura, geralmente, o Caruru é partilhado numa gamela (prato de barro) e segundos os preceitos deste ritual, deve se comer de mãos para manter o contato diretamente com as energias dos alimentos rituais que são colocados no prato, tais como, pedaços de cana, vatapá, abóbora cozida, feijão preto cozido, ovo e arroz cozido, farofa de azeite de dendê e de mel, feijão fradinho cozido, frango cozido etc. Não perdendo de vista, é sabido que se come o Caruru no local onde está acontecendo a ritualística, as crianças são colocadas sentadas numa esteira de palha, em sentido circular, onde são oralizados cânticos específicos de São Cosme e Damião. Esta comida se relaciona com os sentimentos de fé e devoção que são transmitidos a todos sem distinção, abrilhantando-se a festa ritual, assim, celebrando as maravilhas da cultura africana e baiana.
Referências
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade; tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro: Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
NASCIMENTO, Luísa Mahin. VOZES DE FÉ E DEVOÇÃO: UMA ETNOGRAFIA DO CULTO DOMÉSTICO A COSME E DAMIÃO EM CACHOEIRA/BAHIA. Revista Olhares Sociais, Cachoeira, v3. nº. 02, p. 5-30, 2014.
RIBEIRO, Elder Pereira., et al. A IMPORTÂNCIA DA COMEMORAÇÃO DO 13 DE MAIO DA PRETA VELHA MARIA JOANA DO ILÊ AXÉ IDAN DE SANTO AMARO-BA. Revista Acadêmica GUETO, Amargosa, v.10. nº.01, p. 30-39, 2017.