Ahhhhh, o samba! Manifestação popular em forma de oração que veio dar no Brasil enquanto expressão de canto e dança para se louvar a esperança de um novo viver, de novos cotidianos livres de toda dor, sofrimento e preconceito. Expressão cultural de resistências e sobrevivências afro-brasileiras ante ao nosso racismo secular, além de memorial vivo de ancestralidades e saberes afro em uma sociedade historicamente estruturada para negar e, em último caso, destruir – física e psicologicamente – toda importância e qualquer virtude de sociabilidades negras.
Muito mais do que uma “simples” forma de canção, é uma oração que portanto visa o reconectar dos seus a algo maior do que as agruras do mundo material, possibilitando-lhes o ato de religar com as suas origens e com a sua potencialidade de sujeito transformador do mundo que o cerca, sendo Jovelina Pérola Negra, nesse sentido, uma de suas maiores vozes e intérpretes, uma verdadeira sacerdotisa do samba. Nascida no bairro de Botafogo no Rio de Janeiro, mas desde a mais tenra infância habitando a Baixada Fluminense na cidade de Belford Roxo, Jovelina Pérola Negra – nome artístico adotado por Jovelina Farias Belfort (1944-1998), ex-integrante da ala das baianas do Império Serrano (ALBIN, 2020), além de também pastora das rodas de samba da tradicional agremiação de Madureira, e fã do samba de partido alto de Bezerra da Silva – foi cantora das mais originais da denominada Música Popular Brasileira, que conjugava em si a intensidade de Clementina de Jesus(1901-1987), com a imponência de Dona Ivone Lara (1922-2018), aliada a sua própria capacidade interpretativa, com um domínio de palco dos mais singulares. Uma das referências fundamentais para se buscar entender a importância e significado do “novo samba carioca” – oriundo do círculo artístico em torno das rodas de partido alto do Cacique de Ramos (1) – desde final dos anos 1970 e por toda década dos anos 1980, para à formação de consciência étnica-racial e social da população afro-brasileira daquele período.
Senhora de uma presença artística imponente e impactante, mesmo com sua baixa estatura física, (re)interpretando cada canção de maneira única e visceral, estabelecia uma conexão com seu público, um processo de catarse coletiva. Uma grande gira, em que as barreiras e diferenças entre artistas e plateia não mais existiam, em que todos se conectavam para (re)estabelecer (novos) vínculos, sociabilidades, uma comunhão que opera “fora do ritmo”, daquilo que comumente se aceita enquanto praxe. Cada show de Jovelina, era uma celebração dos valores e significados da negritude brasileira, da preservação de saberes e ritos de África, até da reconstrução e reconfiguração destes em terras novas, ao longo da presença – enquanto herança – africana na formação e caracterização da sociedade nacional.
Suas inequívocas qualidades interpretativas presentes em seus álbuns, o seu repertório equilibrado entre o retrato – alegre ou depressivo – cotidiano do subúrbio carioca e críticas sociais, com especial foco ao racismo brasileiro e a auto estima (valorização histórica, cultural e social) das populações afrodescendentes, já nos demonstra, por si só, uma artista consciente de seu papel crítico, ciente de sua potencial condição de transformadora da realidade mundo daqueles que optou por retratar em suas interpretações.
Toda a magnitude e pujança de sua obra, convém destacar, se fazia compreender em sua plenitude quando se manifestava no palco. No encontro e convivência direta com os seus, era quando Jovelina elevava o nível de sua arte a outros patamares, inimagináveis para a maioria dos artistas, confinados a previsibilidade, ou conformismo, de suas respectivas manifestações artísticas.
Jovelina acabava assim por realizar o cantar de sua própria vivência, enquanto oriunda de um universo histórico, social e étnico – racial que buscava valer os seus direitos sociais mais básicos, o reconhecimento efetivo e prático da cidadania negada, historicamente e socialmente, aos seus.
Ela se fazia enquanto a representação popular artística de uma noção e prática de negritude que ainda não se fazia notar, ou perceber, em toda a sua significância e importância. Uma práxis artística que na década de 1980 teve em Jovelina o seu ampliar e que posteriormente se faria radicalizar por outros artistas, mas que teve no pagode da Pérola Negra, uma de suas primeiras e mais significativas manifestações.
Uma artista de viés popular, compromissada em fazer de seu samba, um instrumento de conscientização e mudança social para seu povo. Ao qual optou por representar através de seus álbuns, interpretações e shows. Não por acaso, adotando o nome artístico de “Pérola Negra” ao ressaltar ao mesmo tempo a raridade de uma artista, com sua qualidade e originalidade. Além de enfatizar seu pertencimento ao segmento populacional afro-brasileiro. Ao qual, orgulhosamente, se fazia situar enquanto mulher e brasileira (2). Condição esta que se revelava ao decorrer de seus shows, em que o realce do suor, refletido pelas luzes dos palcos, davam um brilho majestoso ao negrume ébano de sua pele, lhe dando uma característica majestosa, de transcendência em relação aos demais – músicos e plateias – que ali tomavam parte da grande comunhão que, de fato, eram as apresentações de Jovelina.
Em certo aspecto, ela foi a artista de viés estritamente sambista, que melhor representou a preservação de elementos mais tradicionais do samba (samba de roda, batuques, as giras, a improvisação do partido alto), sem deixar de transparecer a ocorrência de um processo de desenvolvimento artístico que infligia a esta mesma tradição. Esta sua particularidade artística, aliada à sua práxis do samba enquanto elemento constituinte de negritude popular no Brasil, acreditamos possam ser alguns dos fatores responsáveis por seu amplo reconhecimento de crítica e, em especial, do grande público. Além do seu carisma e impacto gerados por sua voz e presença de palco, sendo uma das figuras artísticas das mais respeitadas e representativas em meio ao vasto e diversificado universo da cultura popular brasileira. Mesmo após mais de duas décadas de seu falecimento. Com seus álbuns sendo cuidadosamente esmiuçados por novos artistas, ou continuamente tocados nas reuniões sociais e familiares nas áreas urbanas periféricas das grandes e médias cidades brasileiras.
O que nos demonstra que apesar de sua inequívoca representação dos subúrbios e morros cariocas, sua arte samba faz por alcançar limites muito além da geografia física das ermas, ou isoladas (urbanisticamente) plagas da capital carioca e baixada fluminense. Uma artista que se fez enquanto representante daqueles que não tinham voz, cantando a vida, os anseios, desejos e desilusões, mas acima de tudo a esperança dos historicamente marginalizados e segregados em sua condição cidadã, quando não humana, em terras brasileiras.
O advento de sua morte em final dos anos 1990, acabou por representar um hiato artístico que até hoje não se fez preencher no universo cultural do samba – a mais importante e significativa expressão sociocultural brasileira – que se revela até hoje orfão de uma persona com um aprouch artístico pleno em fazer cantar e representar aos seus, para dessa maneira se fazer valer enquanto artista, no discurso e na prática, popular.
Uma pérola não apenas enquanto sambista, mas principalmente enquanto representante maior desta tradição. Afinal de contas, quem gritou o samba – no sentido de fazê-lo ser ouvido em toda a sua intensidade – em toda a sua plenitude e magnitude como ela? Ancestralidade, modernidade e contemporaneidade em cada olhar, tom e gestual ressignificando espaço, tempo e possibilidades através de seu cantar. Além de acabar por influenciar aos processos de reconstrução de novas possibilidades identitárias (individuais e coletivas) e de práxis políticas (reivindicatórias) das populações afrodescendentes, em contestação frontal aos ideários de democracia racial ou harmonia social vigentes ante a “normalidade” conservadora, elitista e racista da sociedade brasileira.
Não sendo por acaso que em inúmeras festas nos subúrbios e periferias do Brasil, ou em igual quantidades de roda de samba, se faça ecoar os versos ritmados e sincopados, na palma da mão, em forma de canto e resposta. O que acreditamos seja, poeticamente, o maior reconhecimento que sua obra e pessoa poderia receber. A saudade eterna em amor e carinho, daqueles que fez por cantar em sua carreira.
Uma pessoa que tinha noção de seu valor histórico e social, enquanto mulher negra e suburbana. Sem se deixar desmerecer, se fazer ou sentir diminuir por estas características. Muito pelo contrário, pois fazia destas os seus elementos mais representativos para a construção de sua persona artística e de sua imediata identificação pelo grande público.
Mulher que enaltecia o valor e a importância das trabalhadoras domésticas – profissão que exerceu, além de vendedora ambulante, até a consolidação de sua carreira artística profissional – já em meados da década de 1980 exigindo a legalização da categoria e os seus respectivos direitos trabalhistas. Ciente e orgulhosa de sua condição enquanto mulher negra e suburbana. Uma artista, literalmente, do povo, pelo povo e para o povo, sem os ranços ideológicos que tal definição possa inflar na interpretação de alguns.
Por isso os cantos de Jovelina sempre estão associados ao não desistir, a auto valorização, a auto estima. Um canto de esperança por uma vida melhor, mais digna, mais justa, que haverá de vir. Não por consequência “outra”, mas pela construção dos hoje oprimidos e vencidos. Sendo o samba, a expressão artística que realizaria esta realidade. Forma de cultura, de cunho e origem religiosa, que têm por premissa o purificar de todas as frustações e mágoas. De sublimar as decepções e arrependimentos, superar as agruras e dificuldades, para assim se buscar fortalecer os laços comunitários – de companheirismo e solidariedade – e manter vivas as origens e tradições das populações afrodescendentes. Jovelina Pérola Negra é aquela que fez por cantar a esperança em novos dias, que apesar de todos os percalços, não se deve desistir.
“É
Foi ruim a beça
Mas pensei depressa
Numa solução para a depressão
Fui ao violão
Fiz alguns acordes
Mas pela desordem do meu coração
Não foi mole não
Quase que sofri desilusão
Tristeza foi assim se aproveitando
Pra tentar se aproximar
Ai de mim
Se não fosse o pandeiro, o ganzá e o tamborim
Pra ajudar a marcar (o tamborim)
Logo eu com meu sorriso aberto
O paraíso perto, pra vida melhorar
Malandro desse tipo
Que balança mais não cai
De qualquer jeito vai
Ficar bem mais legal
Pra nivelar
A vida em alto astral”
(GUARÁ; faixa 01: 1988)
E que ao final de tudo, novos tempos se farão por vir, em uma nova aurora, sempre na voz de um novo samba…
Notas Bibliográficas
- Movimento que representou uma modernização do samba carioca, com maior destaque a instrumentos musicais, como o bandolim, que acabaram por modificar o conjunto harmônico deste estilo musical. Além de uma valorização de elementos de sambas mais tradicionais, tais quais a roda de samba, samba de terreiro e o partido alto, para elaboração de uma nova vertente do samba no Rio de Janeiro, que acabou recebendo o nome de “pagode”, se tornando uma nova etapa aos processos “evolutivos” do samba ao longo do século XX e que acabaria por influenciar novas expressões das músicas urbanas afro-brasileiras desde então, como, dentre outros o “pagode paulista”, o “rap brasileiro”, o “funk carioca”. Além da Jovelina Pérola Negra, abordada neste artigo, podemos citar outros artistas representantes deste movimento, como Leci Brandão, Mauro Diniz, Almir Guineto (1946-2017), Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal e Marquinhos Satã.
- Durante décadas exerceu a profissão de doméstica na Zona Sul carioca. O que nos revela uma ligação orgânica, direta com a realidade que fazia por cantar, enquanto intérprete de uma realidade ao qual fazia parte enquanto negra, mulher, trabalhadora e suburbana. Nos revelando um viés artístico étnico-racial, classista e de gênero de sua obra.
Referências audiovisual e bibliográfica
ALBIN, Cravo. Jovelina Pérola Negra. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. In: http://dicionariompb.com.br/jovelina-perola-negra/biografia, acessado em 28/08/2020.
NEGRA, Jovelina Pérola. Sorriso Aberto. Gravadora: RGE, 1988.
NEGRA, Jovelina Pérola. Luz do repente. Gravadora: RGE, 1987.
NEGRA, Jovelina Pérola. Arte do encontro. Gravadora: RGE, 1986.
NEGRA, Jovelina Pérola. Jovelina Pérola Negra. Gravadora: RGE, 1985.
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(*) Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento social negro no Brasil.