Relato de campo realizado no julgamento do RE 494.601/RS no STF pela advogada, antropóloga, produtora cultural, capoeirista, muzenza e pesquisadora Haydée Paixão.
por Haydée Paixão Fiorino Soula para o Portal Geledés
I – SOBRE O JULGAMENTO
O dia 28 de março de 2019 tornou-se um marco na história da luta, mais que centenária, pela liberdade religiosa, crença e culto das religiões de matrizes africanas e para os povos e comunidades tradicionais de terreiros de todo o Brasil.
Trata-se do dia no qual o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, proferiu decisão no Recurso Extraordinário 494.601 favorável à manutenção da lei estadual do Rio Grande do Sul que garante e protege o abate religioso realizado, em especial, às religiões afro-brasileiras. O Ministério Público do Rio Grande do Sul questionou a constitucionalidade da referida lei alegando que seria atentatória ao princípio da isonomia. Já a Associação de proteção dos animais contra maus tratos alegou que, dentre todos os abates, o industrial (frigoríficos), o praticado pelas religiões judaicas (carne kosher) e árabes (halal), o efetuado pelas religiões de matrizes africanas seria o mais cruel e incorreria no referido maus tratos.
Após ser suspenso em 09 de agosto de 2018 por pedido formulado pelo Ministro Alexandre de Morais de “dar vistas” ao processo, o julgamento teve inicio com seu voto, que, como presenciamos, realmente fez valer a espera de sete meses e surpreendeu, já que, a despeito de minha discordância pessoal em relação à sua política de segurança pública – apresentou argumentação que desfez a interpretação preconceituosa, ignorante e racista feita da lei do Rio Grande do Sul pelas partes autoras, quais sejam, Ministério Público e Associação ambientalista.
Citou importante referência bibliográfica sobre os estudos das religiões afro-brasileiras no Brasil, o livro “Santo também come” de Raul Lody de 1979, que ao lado de outro clássico do mesmo autor o “Candomblé: religião e resistência cultural” de 1987, constituem-se leituras salutares tanto para quaisquer pesquisadores na área quanto para o público em geral interessado em conhecer melhor essa religião tão bonita e profunda, desfazendo estereótipos negativos estruturados e propagados pela cultura-educacional colonial, patriarcal, capitalista e racista em hegemonia no país.
Referiu-se, ainda o ministro, aos cultos e oferendas realizadas aos orisàsXangô, Yemanjá e Esu. Com certeza eles estavam lá, fazendo justiça, nos dando bom ori/mutuê e reconfortando nossa mente com paz e serenidade, dando poder de fala nas mensagens e acontecimentos subliminares, mesmo diante de um crucifixo imenso pendurado nas paredes da Suprema Corte.
A seguir, o Ministro Roberto Barroso, constitucionalista conhecido nesta área, se apresentou como defensor e protetor da liberdade religiosa, e elucidou que, a necessidade da proteção especial das religiões de matrizes africanas na Lei do Rio Grande do Sul encontra-se explicitada na própria Exposição de motivos para sua criação, que é a necessária proteção à uma religião criminalizada, perseguida e demonizada e em situação de vulnerabilidade por conta destes ataques perversos e ilícitos. Quanto à tese do Ministério Público, a refutou de maneira simplória, uma vez que a isonomia consiste em proteger igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na proporção de suas desigualdades. É a consagração da igualdade como reconhecimento da liberdade de culto e fé, não só das religiões afro-brasileiras, mas de todas as religiões e crenças no país.
Quanto ao tema dos maus tratos aos animais, explanou que a discriminação começa com o desconhecimento, e que a sacralização realizada pelos cultos de matrizes africanas condiz com tratamento digno dado aos animais que são oferecidos às divindades com rezas, canto, cuidado – e até, muito amor. Mencionou ainda que, a ética animal constitui-se como um avanço na sociedade para o exercício dos direitos fundamentais, porém não pode ser utilizado de forma destorcida e desproporcional para a persecução ilegal e odiosa das religiões afro-brasileiras.
Rosa Weber refutou um outro argumento levantado pelo Ministério Público, de ordem jurisdicional, sobre a pretensa usurpação de competência da União pelo estado do Rio Grande do Sul, pois estaria legislando sobre direito penal. Impugnou afirmando que o exercício do poder de polícia estadual em nada afeta a incidência do Código penal, sendo constitucional tal permissão concedida ao abate religioso afro-brasileiro.
Ricardo Lewandowski foi mais breve em seu voto e denotou pressa para cumprir compromisso de palestra em outro estado, saindo mais cedo do julgamento. O advogado Hédio Silva Júnior, que fez brilhante sustentação oral e responsável pelo acompanhamento do feito ao lado dos advogados Antonio Basílio Filho e Jader Freire de Macedo Junior, foi citado inúmeras vezes pelos ministros[1], sendo que o Ministro Luiz Fux leu trechos in verbisdo contido naquele documento, como a “Carta ao Respeito da Tolerância” de John Locke. O ministro citou o julgamento da vaquejada[2], referindo-se que naquele caso sim haveria crueldade imposta aos animais.
Carmen Lúcia trouxe uma importantíssima noção de humanidade ao resgatar a nossa origem comum africana, já comprovada cientificamente com o crânio mais antigo do mundo encontrado naquele continente e reiterou que o recurso em questão tratou mais da manifestação de preconceito arraigado na mentalidade de grande parte dos cidadãos.
Por fim, Dias Tófoli, atual presidente da suprema corte encerra a votação proferindo voto favorável, citando ainda trecho da canção “sangue latino” de Secos e Molhados no meio do julgamento, e por unanimidade decide o plenário do STF pela constitucionalidade e por maioria, negou provimento ao Recurso Extraordinário.
II – DO DIREITO DAS RELIGIÕES DE MATRIZES AFRICANAS E DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS
A liberdade de consciência e de religião está garantida na Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecido como Pacto San José da Costa Rica, promulgada pelo Decreto 678/1992 no artigo 12.
A decisão favorável do STF pela constitucionalidade da lei do Rio Grande do Sul em verdade assegura o ditame do artigo 5º, inciso VI da CF/88 ao determinar que a liberdade de consciência e de crença são invioláveis, cabendo ao Estadoassegurar o livre exercício dos cultos religiosos, garantindo na forma da lei a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.
De seu turno, o artigo 215 da CF/88 preceitua que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais, incluindo das religiões de matrizes africanas.
O Estatuto da Igualdade racial, Lei 12.288/2010, artigos 23 a 26, prevê expressamente o direito à liberdade de consciência e crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana desde a celebração, de reuniões, festividades, celebrações, inclusive, acesso aos órgãos e aos meios de comunicação para divulgação e em quaisquer outros locais. Assegura ainda, a assistência religiosa aos praticantes de religiões de matrizes africanas em qualquer estabelecimento de privação de liberdade, seja hospitais psiquiátricos, unidades de cumprimento de medidas socioeducativas ou penitenciárias.
Deste modo, o que queremos éo fortalecimento de redes de proteção às religiões de matrizes africanas, tendo em vista as ofensas, perseguições e violências perpetradas tanto pelas próprias instituições estatais quanto pelos cidadãos inflamados com um discurso racista e de ódio.O que queremos é o Respeito à pluralidade que constitui a sociedade brasileira, o fomento de uma cultura de paz, a garantia do livre exercício de qualquer fé, de qualquer culto, de qualquer crença, com medidas efetivas a serem adotadas pelos Estados, Municípios e DF. E, por fim, exigimos que essa decisão judicial se converta em políticas estatais de garantia efetivas ao nosso povo.
III – DO RACISMO AMBIENTAL
O próprio tema da justiça ambiental possui seu surgimento atrelado às lutas raciais desenvolvidas pelos negros nos estados Unidos, na década de 1980, pois o que ocorria era a própria segregação socioracial no contexto urbano.
A Constituição Federal em seu artigo 225 determina que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, e que ele é um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
As religiões de matrizes africanas são as que sempre protegeram a natureza, uma vez que seu culto é feito para e com base nos próprios elementos da natureza como plantas, pedras, conchas, água do rio, água do mar, dentre outros.
Os animais são utilizados dentro de um contexto sagrado e são, muitas vezes, criados de forma natural e destinada a esse tipo de abate desde o nascimento, inexistindo conduta que possa ser considerada lesiva ao meio ambiente, ao contrário, é justamente a preservação e restauração dos processos ecológicos como o manejo de espécies e ecossistemas determinados pela tradição.
IV – SOBRE OS EFEITOS DA DECISÃO
Destaca-se a importância dos efeitos desta decisão, dado que, caso fosse contrária às religiões de matrizes africanas não afetaria somente o estado do Rio Grande do Sul, mas os membros, adeptos e simpatizantes das religiões afro-brasileiras de todos os estados do Brasil.
Por unanimidade decidiu-se com repercussão geral a constitucionalidade da norma impugnada e, por maioria de votos, fixou-se a seguinte tese: “É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”, vencido o Ministro Marco Aurélio, que pretendia limitar o alcance da norma para somente nos casos nos quais formos comer o alimento. Ocorre que há oferendas que não são ofertadas.
Após a decisão favorável o publico presente, foi comemorar tocando no tambor seus ritmos tradicionais. Deste modo, após a vitória histórica das religiões de matrizes africanas no julgamento do Recurso Extraordinário 494.601/RS, presenciei um dos momentos mais lindos da minha vida: a União dos povos indígenas e dos povos de matrizes africanas JUNTOS, celebrando e invocando seus ancestrais!
Para mim, foi lindo e emocionante porque no fundo somos um só povo, somos o mesmo povo escravizado, explorado e saqueado, porém que sempre lutou e resiste até hoje, bravamente, a toda a maledicência, ignorância e crueldade desse poder colonial instituído.
Somos o mesmo povo guerreiro, que verdadeiramente compreende a importância e zela pela vida, pelas divindades da natureza, pela sacralização dos animais, pela nutrição dos alimentos. É desse povo que vem a transmissão de valores como os da liberdade, igualdade e fraternidade e não da revolução francesa. É dessa ancestralidade afro-amerindia que o Brasil se constitui como nação, é essa identidade, concepção e força que precisamos resgatar para o fortalecimento e a garantia dos nossos direitos fundamentais e direitos à vida.
O céu de Brasília esteve em festa com todos os nkices, orisás, voduns, caboclos e todas as demais entidades e encantados de espíritos ancestrais dessa terra. Até pareceu mesmo que o céu de lá chegava mais perto da gente.
[1]Tese de doutorado “A liberdade de crença como limite à regulamentação do ensino religioso”. Disponível na Biblioteca digital da PUC-SP em: https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/18413
[2]Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4983, ajuizada pelo procurador-geral da República contra a Lei 15.299/2013, do Estado do Ceará, que regulamenta a vaquejada como prática desportiva e cultural no estado. A maioria dos ministros acompanhou o voto do relator, ministro Marco Aurélio, que considerou haver “crueldade intrínseca” aplicada aos animais na vaquejada.