O colorismo e o privilégio que ninguém te deu

Provocada por registros recentes nas redes sociais acerca do colorismo, me senti convidada a compartilhar um pouco das reflexões que tenho desenvolvido no meu trabalho de Mestrado.  Confesso que as declarações recentes da Dr. Sueli Carneiro sobre a necessidade de unirmos pretos e pardos na luta contra o racismo, foram o incentivo final para que eu desviasse dessa escrita densa, e me permitisse dividir algo dessas análises que tem me ocorrido. 

À Dra. Sueli Carneiro eu também devo a compreensão que tive pela primeira vez, quando li o texto da sua autoria “Negros de pele clara”, onde ela me explicou que é bem fácil para nós reconhecermos como os brancos são diversos entre si, sendo eles loiros, ou ruivos, ou morenos… e por outro lado, como é difícil para nós reconhecermos que também há diversidade entre a população negra. 

Nesse texto selecionei um tópico do meu trabalho para compartilhar. Ele trata sobre privilégio. 

Segundo o IBGE (2010) a taxa de desempregados no Brasil é de 8,85% para pardos, 8,93% para pretos e 6% para brancos. No mesmo período o Instituto registra que 45,47% dos pardos formam a população de baixa renda – definida como àquela que possui uma renda menor que a metade de um salário mínimo, os pretos são 41,10% dessa população e os brancos 23,53%. A taxa de analfabetismo de pretos é 14%, 12,6% para pardos e 5,7% para brancos. Entre 2007 e 2017 o Sistema de Informações sobre Mortalidade registrou que dos homicídios que vitimizaram homens, 64,6% eram de homens pardos.  Passando pela renda, escolarização e as marcas do genocídio, eu paro essa apresentação de números oficiais para voltar ao assunto do privilégio. 

Quando conversei com entrevistados autodeclarados negros, de pele clara, para o meu trabalho, queria saber, dentre outras coisas, quais eram as diferenças que eles supunham existir entre eles e os pretos. Foi um consenso: o privilégio. Todos eles me falavam assim, “olha, eu sofro racismo, mas uma pessoa de pele preta sofre mais”. Alguns deles me justificavam assim: “é aquela coisa do colorismo né, quanto mais escuro, mais discriminado”. Essas frases me inquietaram em muitos sentidos, primeiro, como qualificar ou quantificar mais racismo e menos racismo? Sobre qual privilégio eles estão falando se os números registram condições equiparadas de exclusão e de desigualdade para pretos e pardos? E como e por que o colorismo foi sintetizado dessa maneira por todos os Youtubers, blogueiros e qualquer militante jovem que esteja pensando sobre essas questões?

O colorismo formou um sistema de verdade porque retroalimenta um mito antigo, pacto civilizatório brasileiro, a tão falada Democracia Racial, que todo intelectual negro engajado quer combater, mas que tem raízes tão profundas que ressurge contemporaneamente com o colorismo. 

Li a monografia de uma jovem pesquisadora que, com outras jovens mestiças (como ela), queria compreender como essa identidade “parda” estava sendo elaborada. Uma das entrevistadas lhe disse que, embora se reconhecesse negra, nunca havia sofrido racismo. A pesquisadora usava dentre outras falas, esta, para perguntar: ora, como resolver a identidade desse indivíduo fora do dualismo branco e negro? Parágrafos depois, a história de vida dessa jovem nos é apresentada. Ela teria sido expulsa de casa ao assumir o seu cabelo crespo, que a mãe não aceitava. Nunca sofreu racismo? Regime de verdade. Isso nos rende outro texto mais adiante.

Voltando à minha pesquisa, eu convidava meus colaboradores a pensar mais sobre esse privilégio. Eu queria saber o que eles deixaram de passar por serem menos escuros, ou o que eles conseguiram sendo mais claros… Eu sei que não é nada fácil ter que elaborar isso assim, rápido. Por isso, na maior parte das vezes, essa foi uma questão que os deixei pensando depois de me despedir daquele encontro, sem ter uma resposta.

O meu ponto não é falar que não existem diferenças entre nós. Comecei falando que reconheci lá atrás que somos diversos. Existem diferenças entre a negra magra e a gorda, entre o homem negro e a mulher negra, a pessoa negra com deficiência e àquela que não é vitimizada pelo capacitismo. Entre nós, mulheres negras, existirão mulheres que serão mais requeridas para a relação sexual que outras, por exemplo, essas, as mais claras, serão inclusive o alvo principal da exploração sexual via tráfico de mulheres e turismo sexual no Brasil. E essa preferência sexual nunca poderá ser para nós, comunidade negra, signo de privilégio. 

O que precisamos pensar é se esse privilégio é mesmo absoluto. E se é operante estruturar uma identidade que nunca se completou na branquitude porque “o pé duro do cabelo nunca deixou disfarçar” e, ao trazer essa pessoa para a comunidade negra, machucada de todas as formas pela pobreza, pela preterição nas escolhas afetiva do outro, marcada pelo racismo que lhe sequestrou inclusive a possibilidade de construir uma identidade positiva e consciente do seu pertencimento racial, convencê-la de que essa identidade precisa se basear numa noção de privilégio – frágil.

O racismo mina as possibilidades de construirmos uma condição de dignidade humana, mas não podemos entrar numa competição por migalhas. Mais do que a aproximação estatística entre pardos e pretos, esses números nos revelam àquilo que o Movimento Negro na década de 70 já nos dizia: a diferença entre nós e os brancos é abissal, e é justamente essa organização e distribuição racial (desigual) de riqueza, que nossa sociedade opera e que nos faz reivindicar a “raça”, mesmo esvaziada do seu conteúdo biológico, genético. 

Não podemos inventar a roda. “Tenha bom senso (censo)” ou “Não deixe sua cor passar em branco” eram cartazes da década de 80 que o Movimento Negro divulgava no sentido de nos educar a assumir e positivar a nossa identidade negra, não afrobege, não parda, não mulata, negra. O padrão de beleza e o dono do capital é o branco, não podemos disputar entre nós a preferência dele pra quando quiser bater palma para nos ver sambar. Queremos ser os donos da emissora, do poder, e do controle da nossa própria imagem, para citar Patricia Collins.  


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