O corpo da mulher negra como pedaço de carne barata

Homens que possuem espaço na mídia foram instigados a ficarem como espectadores nesta semana, ao invés de escreverem e publicarem textos sobre os direitos das mulheres e questões de gênero. Ou seja, promoverem uma ocupação de seu espaço para que elas falassem por si. Portanto, de segunda a domingo (8), mulheres de diferentes origens, histórias e regiões estão publicando, neste blog, sobre o tema dentro da iniciativa #AgoraÉQueSãoElas.

por Leonardo Sakamoto, do Blog do Sakamoto 

O primeiro texto de hoje é da filósofa e feminista Djamila Ribeiro. Na segunda-feira,Juliana de Faria e Luíse Bello, do Think Olga, responsável pela campanha #primeiroassedio, estrearam a série. Na terça, foi vez da cantora, compositora, atriz e ativista Karina Buhr.

FOTO: Daisy Serena

O corpo da mulher negra como pedaço de carne barata,

por Djamila Ribeiro

O corpo da mulher negra não é dela. Essa á sensação que carrego desde muito cedo.

A ultrassexualização de nossos corpos faz com que interpretem nossa imagem baseada na exotização. “Nós carregamos a marca” é uma frase de Luiza Bairros e que exemplifica bem nossa situação. Essa marca que carregamos, fruto de violência, é mascarada pelo mito da democracia racial, o que faz com que se ignore ou romantize o problema.

Ou pior: a marca nem é vista como problema, é vista como elogio, exaltação da beleza. Porém, essa marca existe e nos segue para além das terras tupiniquins. A exotização da mulher negra está presente em todos os lugares, ainda mais se aliado ao fato da nacionalidade brasileira. De modo geral, as brasileiras são estereotipadas como sendo excessivamente sensuais.

Um exemplo dos estigmas que estão colocados sobre os corpos das mulheres negras é o caso de Vênus Hotentote. Seu nome original é Sarah Baartman. Nascida em 1789 na região da África do Sul, no início do século 19 foi levada para a Europa e exposta em espetáculos públicos, circenses e científicos devido aos seus traços corporais. Segundo Damasceno (2008), Sarah Baartman deu um corpo à teoria racista. Não importa aonde vamos, a marca é carregada.

Sarah Baartman morreu em 1815, mas seu esqueleto, bem como uma reconstrução de seu corpo, ficaram à exposição do público no Museu do Homem, na França, até 1975. Apenas em 2002, seus restos mortais forma devolvidos à África do Sul.
Sarah Baartman morreu em 1815, mas seu esqueleto, bem como uma reconstrução de seu corpo, ficaram à exposição do público no Museu do Homem, na França, até 1975. Apenas em 2002, seus restos mortais forma devolvidos à África do Sul. (Reprodução/ Blog do Sakamoto)

Numa viagem que fiz à Argentina, em 2013, fortaleceu-se ainda mais essa noção. Assim que cheguei em Buenos Aires, percebi os olhares. Em La Plata, cidade aonde fui para um congresso, quando saía, pessoas vinham pegar nos meus cabelos (uso tranças compridas de kanekalon), abordavam-me ao acaso, me tocavam. Eu era a Vênus Hotentote num espetáculo público.

“Ah, mas isso acontece porque você é bonita”, dizem alguns. Essa situação ainda é vista por esse viés do elogio racista. Como ser humano, tenho o direito de andar na rua sem ser incomodada, sem que pessoas desconhecidas me toquem ou mexam no meu cabelo.

Outro exemplo é a caça a “mulatas” promovido pela rede Globo para eleger a “Globeleza”. Nesse caso, percebe-se como a mulher negra é colocada em lugares determinados, como é vista como objeto sexual, produto a ser vendido. Quantas negras vemos na grade da emissora? Quantas apresentadoras, repórteres, atrizes? Somos invisibilizadas em outras áreas e super expostas no carnaval como pedaços de carne. Mulheres brancas também são objetificadas, isso é inegável. Porém, a mulher negra carrega a opressão histórica do racismo. Mesmo nesse mercado de exploração, a carne negra é a mais barata.

Para se ter uma ideia, de toda a história da revista “Playboy” no Brasil, somente oito mulheres negras foram capas. Nos filmes pornográficos, são minorias e atuam em trabalhos bem específicos ou relacionados ao carnaval ou ainda para “amante de negras”. Nas propagandas de cerveja, nas quais mulheres são objetificadas, raramente há negras. Até nesse mercado exploratório, o lugar ainda é inferior. E fora dele, a situação não é diferente.

Não estou de forma alguma concordando com a objetificação dos corpos dessas mulheres, e sim, elucidando como até nesse mercado a mulher negra é discriminada e relegada a papéis específicos. E, igualmente, não estou dizendo ser contra mulheres que estão nesses papéis, muito pelo contrário. O problema é sempre nos reduzir a essas possibilidades. Como seres humanos, somos diversas, complexas e deveríamos ser respeitadas em nossa humanidade e representadas de modo mais diverso.

Um dia, numa discussão, quando reclamei que não havia paquitas negras, um rapaz disse: “e qual o problema disso? Eles têm o direito de colocar quem quiserem”. A naturalização do racismo é tanta que algumas pessoas não acham nada demais nós não sermos representadas num país de quase 52% de população negra.

Mas, para além de sermos representadas, temos que problematizar o MODO pelo qual estamos sendo; se esse modo somente reafirma nossa estigmatização.

Quando falamos de abuso sexual de crianças e adolescentes, meninas negras são as maiores vítimas. Segundo dados da Unicef na pesquisa “Violência Sexual”, o perfil das mulheres e meninas exploradas sexualmente aponta para a exclusão social desse grupo. A maioria é de afrodescendentes, vem de classes populares, tem baixa escolaridade, habita em espaços urbanos periféricos ou em municípios de baixo desenvolvimento socioeconômico.

Por esses dados e situação, precisamos de um feminismo que seja interseccional, ou seja, que contemple as mulheres em suas especificidades e reconheça que há aquelas que, por combinarem outras opressões, estão num lugar de maior vulnerabilidade social.

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