O declínio do patriarca e o poder das meninas

Finais de ano são momentos de alegria e reencontro (ou assim dizem as propagandas). Vamos aos fatos: milhares de famílias se deslocam do norte para o sudeste, do centro-oeste para o sul, enfim, em todas as direções dentro de fora do país para encontrar parentes, netos que nasceram, primos que não se conhecem, enfim, uma infinidade de arranjos que se materializam entre o Natal e Ano Novo.

Enviado por LUCIANE SOARES DA SILVA via Guest Post para o Portal Geledés 

Fenômeno curioso que sobrevive as crises e parcelamentos salariais. Poderia ser outro final de ano em volta do peru de Natal. Mas uma situação, em uma cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul me fez observar uma mudança nas correlações de força a que estamos acostumados. Somos socializadas mirando o patriarca sentado na cabeceira da mesa e os demais parentes distribuídos segundo grau de importância, afeto ou desprezo, pela sala e demais cômodos da casa.

Naquele café da tarde porêm, uma menina, com suas tranças longas e sorriso fácil, sentenciou na cabeceira da mesa, ao ouvir um pedido: “mulheres não são empregadas domésticas dos maridos”. Naquela tarde, em uma cidade de colonização alemã que lembra a Twin Peaks de David Lynch, uma menina desconhecia (e em sua fala, recusava) todo o processo de socialização que extermina a criatividade infantil e empregava na mais perfeita gramática a frase que milhões de mulheres não poderiam dizer.

Imaginei em quantas cozinhas do Brasil, mulheres estavam levantando naquele mesmo segundo para servir o café ao nosso velho, poderoso e inexorável patriarca. Sentado na cabeceira, reclamando dos novos tempos, da perda de valores e da juventude.

Passei a vida vendo encarnações distintas do patriarca: o provedor das famílias de classe média, entediado com os parentes, presente na cena em que dominava as falas e ditava o comportamento familiar; o velho ancião que a partir do próprio exemplo demonstrava sua superioridade sobre os filhos, sobrinhos e parentes em geral, fazendo da ceia um púlpito de proclamação de virtudes. O patriarca ausente que demonstrava fadiga com as interações, principalmente com as mulheres da família pelas quais não tinha nenhum interesse ou afeto, preferindo o final de ano da Band ou um canal de esportes.

Ainda lembro também dos que se excediam na bebida a passavam a falar com tom ameaçador sobre os demais familiares. Ali estavam a sua sobremesa preferida, o café na temperatura certa, os presentes distribuídos na hora em que ordenava que todos fossem para sala. Cada casa era como um pequeno reino, dividido e funcional.

Claro que existiam os momentos de conflito em que alguém, comovido e alcoolizado, resolvia encenar um discurso de reclamação familiar. Mas isto não alterava a estrutura, pois era parte do drama familiar encenado a cada ano, que alguém atentasse contra a autoridade. O que há em comum entre estes tipos e outros aqui não descritos?

A virtualidade da violência física e psicológica que opera sobre todos como fundamento da autoridade do patriarca. O alinhamento de forças que leva as mulheres ao medo, a esconder-se nos quartos para tratar de assuntos que “ele não poderia ouvir”.

Assuntos estes, que eram quase segredos familiares: o empréstimo de dinheiro à uma irmã que ele desaprovara, o desemprego de um sobrinho, o divórcio de uma prima, a ruína de parentes de outra cidade, enfim, simplesmente, aquilo que poderia demonstrar a existência de um outro mundo, fora de seus domínios. Era melhor que nunca soubesse.

E desta forma, satisfeito pelo exercício de seu controle e a certeza do cumprimento de seu papel, ele mergulharia em um sofá após a meia noite. E magicamente, os papéis de embrulho sumiriam e os talheres voltariam aos seus lugares. Tudo limpo para a continuidade do drama, em sua versão frugal de café da manhã. Mas naquela tarde, a frase de uma menina ecoou pela casa e explodiu na mesa como um balão cheio de água. Era uma daquelas sentenças lapidares que indicam uma percepção do mundo, das mulheres, do trabalho, da mudança de ventos.

Estas meninas mundo afora não serão empregadas de seus irmãos, namorados ou pais. Mas estas são as guerras silenciosas e ali estávamos no meio do front. O patriarca fora pego sem defesas e acessaria todo o discurso da obediência e dos bons costumes para submeter, fazer valer a ordem. Esta vida sem sentido, mesquinha, que alinha todos dentro do espaço segundo uma forma de vida já morta, estava fatalmente ameaçada.

A vida que remonta aos bons costumes que jamais existiram a não ser como farsa para exercício de castração feminina. Estas são as pequenas revoluções vividas.

De onde virá tanta vontade de criar obedientes meninas? De onde virá tanto desejo de castração? Por que este horror ao movimento do corpo das meninas, livres da ditadura das formas corretas de sentar, falar ou comer? Acreditam mesmo estar educando um ser humano ou existe uma confusão profunda entre adestramento e educação? Por que as meninas são tão ameaçadoras?

E como podemos seguir desconstruindo esta figura patética que é o patriarca com sua xícara de café na mão, olhando de forma grave à todos, na cabeceira da mesa?

 

LUCIANE SOARES DA SILVA  pesquisadora na Uenf da temática racial

 

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