A abordagem insidiosa da Igreja Católica sobre o ensino religioso nas escolas públicas não pode mais ser alvo de omissão por parte das autoridades, em particular dos parlamentares, em nome de supostas boas intenções que permeariam um suposto ensino interconfessional.
Por Roseli Fischmann
Na prática, no cotidiano das escolas, crianças de 6 ou 7 anos de idade são objeto de manipulação por parte de pessoas que sequer percebem o que estão fazendo e vão, com isso, moldando consciências de forma oposta às exigências de autonomia moral presentes na boa educação, disseminando também preconceito e discriminação. Boa parte da polêmica mencionada na mídia durante a semana, como se fosse central no acordo que o governo brasileiro firmou com o Vaticano (acordo abordado de forma insuficiente e insatisfatória pela mídia), e que passará pelo Congresso Nacional, para ser ou não ratificado, tem a ver com temas delicados.
Sucede que tanto o artigo 33 da Lei n. 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, na formulação que lhe foi dada pela Lei 9475/97, afirma que “o ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão (…)”. O texto do acordo com o Vaticano acentuou ainda mais essa formulação. Mas há uma contradição aí: ao mesmo tempo em que se afirma, pela Constituição, o caráter facultativo para as crianças – até porque não poderia deixar de fazê-lo, sob pena de ser inconstitucional -, deixa margem à compreensão de que seria menos íntegro quem não recebesse ensino religioso na escola pública (já que se refere à “formação básica do cidadão”). Trata-se de flagrante discriminação de todos os que, ou não recebem qualquer tipo de educação religiosa, por legítima escolha de seus pais, dos quais não se poderia imaginar serem menos dedicados aos filhos por semelhante decisão; como também discrimina todos que não queiram aceitar o ensino religioso definido pelo Estado e realizado em escolas públicas. Simplesmente fazem desaparecer o direito à liberdade de consciência da educação das crianças e da relação com suas famílias.
Há normas estaduais que estabelecem textos discriminatórios, como as normas em diversos estados, como São Paulo, segundo as quais apenas pode considerado cidadão quem acredita em uma divindade monoteísta explicitada nas normas, mas tão incerta quanto as questões teológicas permitem supor. Por exemplo, seria, mesmo dentro do monoteísmo, uma concepção teológica de três pessoas divinas em uma, ontologicamente a mesma que uma divindade única, como no caso da distinção entre cristianismo e judaísmo? Ou como considerar ser a mesma divindade se em uma religião o lugar que um ser ocupa é de pessoa divina e na outra, de profeta, como se diferencia a presença de Jesus no cristianismo e no islamismo?
Temas como meio ambiente, saúde e em particular saúde reprodutiva podem ser afetadas diretamente pelo tipo de abordagem dada nessas propostas inconstitucionais de ensino religioso, negando o conhecimento científico, pela abordagem que é própria para o campo religioso, mas imprópria para o campo pedagógico, sobretudo da escola pública. Nessa perspectiva, valores e condutas podem ser “ensinados” como verdade absoluta, ignorando a ética e a formação para a autonomia, sem o que não se consolidará jamais a democracia. A correta condução da escola pública, dentro do princípio da laicidade do Estado, não impedirá que crianças e adolescentes tenham vida religiosa; ao contrário, protegerá a escolha das famílias e os ensinamentos das comunidades religiosas, que estarão livres do chamamento do Estado para se associar a alguma entidade civil obrigatória (desrespeitando também a liberdade de associação, nesse caso); ou de fornecer dados de sua religião para um processo homogeneizador e, por isso, dilacerador da própria direito à liberdade de crença que teoricamente a lei estaria a promover.