Não entendo como, depois de séculos de maus tratos, as mulheres ainda continuem nos aguentando
por Javier Cercas no El País
Não nos enganemos: nós, homens de minha geração, já nascemos machistas. Os da minha geração, os da anterior, e assim até o infinito. A culpa, claro, é de nossas mães, coisa que sei muito bem porque sou o único macho em uma casa com quatro fêmeas e minha mãe nunca me deixou lavar um pires que fosse, enquanto minhas irmãs sempre a ajudavam nas tarefas da casa (um beijo para você, mamãe!). Não sei como são os meninos de hoje em dia. A julgar pelo meu filho, são muito melhores do que nós; a julgar pelas estatísticas, iguais ou piores. Pelo menos dessa vez, as estatísticas estão realmente certas.
Mas a verdade verdadeira é que a culpa de tudo isso não é de nossas mães (mais um beijo para você, mamãe!). Inacreditavelmente, desde o começo dos tempos, os homens temos visto as mulheres como seres inferiores,pouco mais do que bichinhos domésticos criados para tornar a nossa vida mais agradável; e isso não foi feito apenas pelos homens normais e comuns, mas também pelos mais sábios dos sábios que já existiram neste mundo. Claro que aqui também existem exceções. A mais conhecida é a de um antigo veterano de Lepanto chamado Miguel de Cervantes, que viu suas irmãs serem humilhadas e insultadas pelos estúpidos de plantão e recheou seus livros com mulheres valentes que não se cansam de denunciar os desaforos dos homens e de reivindicar sua dignidade e sua liberdade. Sim, isso é muito Dom Quixote, muito Dom Quixote. Mas o que ninguém diz é que, se Dom Quixote estivesse vivo, santificando todos os caminhos com a passagem majestosa de seu heroísmo (como disse Rubén Darío), não há nenhuma dúvida de que se dedicaria exclusivamente a perseguir por terra, mar e ar todos esses canalhas que maltratam e matam mulheres; e que, tendo-os captado, cortaria fora sem nenhuma hesitação os seus pintos e testículos e os enfiaria nas respectivas bocas, para em seguida lhes costurar os lábios com barbante e largá-los em plena aridez de Los Monegros para morrerem ao sol padecendo de terríveis tormentos. Isso é o que Dom Quixote faria, e Dom Quixote nunca se engana.
Há coisas que eu não entendo. Não entendo como, depois de séculos e séculos de impiedosos maus tratos e exploração, as mulheres ainda continuam nos aguentando, amando e cuidando de nós. Não consigo entender como é possível que, enquanto covardes de merda matam mulheres indefesas todos os dias, não brote feito cogumelo uma porção de batalhões de mulheres armadas que imitem Dom Quixote e façam justiça com as próprias mãos, dedicando-se a cortar pintos e testículos e fazendo tudo o mais, inclusive a coisa do sol de Los Monegros. Mas o que eu não consigo entender de jeito nenhum é como, depois de ser governadas durante milênios por nós – essencialmente um bando de descerebrados embriagados de testosterona e ocupados apenas em beber cerveja e ver quem é mais macho, enquanto provocamos uma tragédia atrás da outra–, as mulheres não nos tenham vetado terminantemente o acesso ao poder nem nos tenham punido com a obrigação de permanecer de castigo ajoelhados durante os próximos três séculos. Em resumo: há quem pense que o feminismo tem se inclinado há algum tempo para o extremismo, indo longe demais; pois o que eu acho é que atualmente, e até segunda ordem, até mesmo a forma mais radical de feminismo é moderada demais.
Há solução para o nosso milenar e vomitivo machismo estrutural? Em curto prazo, duvido, pelo menos no que me diz respeito. Mas também tenho observado que algumas coisas podem ser úteis: por exemplo, ter uma filha adolescente. Com efeito, um amigo meu tem uma, e, apavorado diante dos perigos que a cercam, criou uma Associação de Pais de Filhas cujo símbolo é uma tesoura de poda e cujo lema é o seguinte: “capar, capar, capar”. Esse é o caminho.
Para finalizar. Isso tudo me ocorreu ao ler um maravilhoso romance em quadrinhos chamado Más vale Lola que mal acompañada [Antes Lola do que mal acompanhada, trocando, no dito popular, sola -só em espanhol – por Lola]. Ele tem como protagonista uma personagem chamada Lola Vendetta, que aparece na capa portando uma espada manchada com sangue quixotesco; seu lema: “O feminismo não deve ser sofrido, mas desfrutado”. Como todos os heróis, Lola Vendetta não tem idade; sua autora, Raquel Riba, tem 27 anos. Que Deus abençoe as duas, e você também, mamãe.
Javier Cercas (Ibahernando, Cáceres, 1962) é professor de literatura espanhola na Universidade de Girona. Publicou vários livros de sucesso, entre eles “Soldados de Salamina’, adaptado para o cinema por David Trueba. Além de seu lado romancista, ele colabora regularmente com o EL PAÍS.