Faz 12 anos que o kilombo1 Manzo Ngunzo Kaiango foi despejado pela prefeitura de Belo Horizonte sob alegação de que as construções no terreno estavam irregulares e infringiram normas de segurança. O Manzo é uma comunidade kilombola ancestral e se constitui a partir de suas origens de resistência e da relação diferenciada com o território, articulada com uma vivência religiosa de matriz africana, sendo, portanto, além de um kilombo, um terreiro. As primeiras estruturas para moradia foram construídas com madeiras e compensados, pelas próprias mãos da matriarca e só em 1975 essas estruturas passaram a ser de alvenaria, através de doações de resto de obras. Aquela intervenção tão violenta da prefeitura implicou na desterritorialização de 13 famílias kilombolas.
Este não seria um caso tão incomum, considerando que não raro nos deparamos com notícias de desalojamento, reintegração de posse e despejo que atingem, em geral, famílias e comunidades negras em diferentes lugares no território nacional, fruto de uma política de habitação urbana ineficiente e excludente, além de graves conflitos fundiários. O caso, entretanto, é marcado por um conjunto complexo de atravessamentos étnico-raciais e religiosos, que marcou de maneira irreversível aquela comunidade.
O Manzo, como é conhecido, é um território que abriga o kilombo e a comunidade tradicional de terreiro. Neste território, um grupo de famílias negras, a maioria delas chefiadas por mulheres, viviam, praticavam sua religião, criavam e educavam suas crianças e reproduziam seus modos próprios de criar, fazer e viver. A ordem de despejo da prefeitura produziu uma intensa comoção interna, que posteriormente seria amplificada para fora dos muros da comunidade, mobilizando pessoas e entidades em defesa dos direitos do Manzo e de quem ali vivia (Moura, 2023).
Não apenas as pessoas foram removidas, mas um conjunto de materialidades, assentamentos, altares e espaços de prática religiosa precisaram ser apressadamente retirados dali, sob o risco de serem destruídos. As famílias foram para um abrigo, sem qualquer respeito às suas especificidades étnicas. O terreiro foi deslocado para outro terreno, nos arredores de Belo Horizonte, resguardado por sua liderança maior, Mametu Muiande.
Coube à Makota Kidoiale, primeira autora deste texto, representando o kilombo, dialogar com agentes do Estado, num contexto marcado pelo descaso e pela discriminação. Prosseguiu-se anos de violações aos direitos das famílias despejadas do Manzo e de negociações realizadas, mas não cumpridas, pela Prefeitura de Belo Horizonte. A vida de toda a comunidade foi impactada por esse caso e, ainda hoje, a história do kilombo Manzo é narrada por meio dessa marca profunda deixada pelo racismo.
Apesar do Decreto 4887 de 2003, em que se prevê direitos quilombolas, e da Convenção da 169 da OIT, em que se prevê a consulta prévia, livre e informada, a Prefeitura de Belo Horizonte não consultou o kilombo Manzo para entender quais seriam os impactos sociais, culturais e ambientais que a comunidade enfrentaria num cenário de deslocamento forçado. Até os dias de hoje, as famílias se deparam com vários conflitos, relacionados ao desmembramento do grupo, que sempre se organizou de forma coletiva. Hoje parte desse coletivo vive – ou sobrevive – separado, mas ainda crê e luta pela titulação do território.
Desde sua constituição, é possível indicar que o Kilombo Manzo está na sua quinta geração. Contudo, com o processo de despejo, a geração neta e bisneta não teve a oportunidade de desfrutar, como as gerações anteriores, das tradições quilombolas, ou seja, não recebeu a mesma criação, perdendo laços afetivos e culturais com o território. Os impactos para a comunidade, especialmente para aquelas pessoas que foram despejadas e que até então haviam vivido naquele território, são devastadores e incluem adoecimento mental, decorrentes da falta de ligação com os cuidados comunitários.
Em meio a esse contexto, atravessado por inúmeras violências, surge a organização para estabelecer a retomada, para que a geração neta do kilombo Manzo possa seguir suas tradições e hierarquias, transmitidas na prática, dos mais velhos aos mais novos. Essa retomada surge como um ato democrático, construído pelas mãos dos kilombolas, que reivindicam que os kilombos também têm direitos que precisam ser garantidos. Afinal, o respeito às tradições kilombolas passa por devolver suas terras tradicionalmente ocupadas, que há séculos reivindicam o direito de viver plenamente e exercer liberdade, autonomia, cultura e religião.
Mais de doze anos depois, daquela fatídica intervenção de despejo, em janeiro de 2023, o racismo passou a ser considerado um crime pela legislação criminal. Por meio da Lei 14.532/2023, a injúria racial foi equiparada ao crime de racismo2, sendo incluído um dispositivo prevendo a criminalização do racismo religioso (Moura & Brito, 2023). Meses depois, em março, foi sancionada a Lei 14.519/2023, instituindo o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé no dia 21 de março. Essa lei prevê que a data comemorativa motive a cada ano debates, reflexões e propostas de solução para problemas ainda enfrentados pelas comunidades tradicionais de terreiro.
Ainda no campo legal, em novembro de 2023, no dia da consciência negra, mais uma norma federal foi assinada, o Plano Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola – PNGTAQ, voltado ao fortalecimento dos territórios quilombolas, sejam eles rurais ou urbanos. Um dos 5 eixos desta nova Política se chama Ancestralidade, Identidade e Patrimônio Cultural e nele, expressões das religiosidades de matriz africana são protegidas e fomentadas.
Essas legislações incidem diretamente sobre casos como o do Manzo que, sendo comunidade kilombola de terreiro, requer atenção na garantia de seus direitos territoriais e de religiosidade. Os terreiros de religiões de matrizes africanas no Brasil são espaços de excelência na produção de conhecimentos e de práticas, que subsidiam historicamente a vida de comunidades do ponto de vista religioso e de um modo de vida próprio. Esses territórios negros têm, ao longo da história, sofrido com perseguições diretas, ameaças a seus espaços sagrados e aos seus e suas praticantes.
Assim, se por um lado o racismo religioso passou a ser crime, tendo um aparato legal para responsabilizar os violadores dos direitos de liberdade religiosa de quilombolas e pessoas de religião de matriz africana, por outro, o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé e o Plano Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (PNGTAQ) são meios de promover essa liberdade religiosa e os seus espaços de prática, os terreiros, bem como os territórios onde essa religiosidade é praticada e onde as pessoas vivem, no caso do Manzo – o kilombo.
Os movimentos negros têm reivindicado sistematicamente uma agenda positiva, de proposições que fomentem o imaginário sobre pessoas e comunidades negras e quilombolas, para além da repressão. É nesse sentido que leis de valorização da cultura negra e quilombola, que inclui as religiões de matriz africana, como o Dia do Candomblé e a Política de Gestão Territorial e Ambiental quilombola, se configuram como instrumentos poderosos. São mecanismos que buscam refundar imaginários nacionais, no sentido de radicalizar o conhecimento geral de que o povo negro foi e é fundamental para a construção social, política, intelectual, cultural e econômica do país.
A Política de Gestão Territorial e Ambiental busca fomentar a proteção dos locais sagrados por meio da valorização de mestras e mestres quilombolas detentores de saberes associados às plantas medicinais e do fomento a ações que integrem a oralidade e as práticas tradicionais às novas tecnologias de registro e difusão de conteúdos culturais relacionais ao território quilombola.
A PNGTAQ busca ainda promover a sustentabilidade ambiental das práticas religiosas por meio da salvaguarda e promoção do patrimônio cultural material e imaterial quilombola e por meio de ações de identificação, reconhecimento e transmissão de conhecimentos e práticas tradicionais associadas à gestão territorial e ambiental.
O despejo do Manzo significou a violação do kilombo em seu espaço físico e de seus marcadores culturais, simbólicos e religiosos. Como quando falamos de sustentabilidade ambiental, estamos falando do preposto constitucional do artigo 225, a atenção recai tanto para as atuais quanto para as futuras gerações. A violação do kilombo Manzo é danosa para a geração de despejados em 2012 e também para a geração vindoura, desterritorializada. Logo, não há como falar de terreiro, não há como falar de quilombo, sem falar de sustentabilidade e de reconhecer seu importante papel para o meio ambiente, numa associação direta entre meio ambiente, reprodução física e cultural, direitos territoriais e religiosos e conhecimentos tradicionais.
Nesse sentido, o caso do Manzo é emblemático para compreender como a proteção e a salvaguarda dos direitos das comunidades de terreiro é também parte importante do respeito aos territórios quilombolas e seus modos de criar, fazer e viver.
- A grafia Kilombo e Kilombola é corrente na comunidade do Manzo. ↩︎
- https://www.geledes.org.br/por-que-injuria-racial-nao-e-somente-um-crime-contra-a-honra/ ↩︎

Makota Kidoiale – Liderança kilombola, mestra dos saberes tradicionais e professora do Encontro de Saberes pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Beatriz Moura – Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente vinculada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Professora e pesquisadora.
Ciro Brito – Advogado com especialização em Direitos Humanos e mestrado em Desenvolvimento Sustentável (UFPA).Foi professor de Direito da Universidade da Amazônia e da Universidade Federal do Oeste do Pará.
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