Por que injúria racial não é somente um crime contra a honra?

No dia 11 de janeiro de 2023, durante a histórica cerimônia de posse das ministras Sônia Guajajara, do Ministério dos Povos Indígenas, e Anielle Franco, do Ministério da Igualdade Racial, foi sancionada a Lei Federal n. 14.532, que equiparou o crime de injúria racial ao crime de racismo. Isso representa um passo a mais no arcabouço institucional do Estado brasileiro rumo à reparação necessária a grupos desde sempre alijados dos espaços de decisão e maiores alvos de discriminação racial, os povos indígenas e o povo negro.

O crime de injúria racial, agora previsto no art. 2-A da Lei n. 7.716, a Lei do Racismo, é caracterizado quando uma pessoa é ofendida em sua honra por conta de sua raça, cor de pele, etnia, religião ou origem. Por sua vez, o crime de racismo é caracterizado quando o agressor pratica ou incita discriminação por conta de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, de acordo com o art. 20 da Lei n. 7.716. Na prática, a equiparação retirou a injúria racial dos crimes contra a honra do Código Penal, mais precisamente das hipóteses do art. 140.

Com as mudanças trazidas pela nova Lei, a injúria racial passa a ser um crime inafiançável e imprescritível. Agora, a prisão em flagrante pode ser convertida em prisão preventiva, porque não há mais possibilidade de pagamento de fiança.

A pena também foi modificada, passando a mínima a ser de dois anos e a máxima de cinco anos. Quando a injúria racial for praticada em eventos esportivos, como jogos de futebol, quando for cometida por duas ou mais pessoas, ou quando tiver como finalidade a diversão ou recreação do agressor ou dos agressores, a punição pode aumentar em até a metade, incorporando ao ordenamento jurídico brasileiro o conceito de racismo recreativo, delineado por Adilson José Moreira (2019).

Essas mudanças trazem perspectivas positivas para uma melhor aplicação da legislação e punição de atos criminosos. A diferenciação entre o crime de injúria e de racismo não era evidente e o que se notava era uma lei branda com aplicação que acabava por beneficiar o agressor. Relegava-se à vítima toda a responsabilidade por ingressar com a queixa-crime e sustentar a acusação de injúria racial. Agora, o processo judicial ganha um caráter público, sendo assim, o Estado passa a ser obrigado a dar o tratamento devido, por meio do Ministério Público.

Mas por que injúria racial não é somente um crime contra a honra?

A retirada do crime de injúria racial do rol dos crimes contra a honra e entrada na esfera dos crimes públicos representa um avanço jurídico importante que alinha o Direito brasileiro ao que cientistas sociais, em especial intelectuais negras e negros têm apontado há décadas: o racismo é um problema estrutural da sociedade brasileira e atinge coletivamente o povo negro, impondo vulnerabilidades a essa parcela que representa mais da metade da população do país (Deus, 2020; Flauzina, 2017; Gonzalez, 2018; Nascimento, 2016; Ramos, 1957).

Muito embora o ato de injúria possa se direcionar a um indivíduo, ele se fundamenta em uma construção social que estereotipa, desqualifica e subjuga toda a coletividade ou grupo racial ao qual esse indivíduo pertence. A injúria racial reproduz a percepção de que negras e negros são cidadãos de segunda categoria. Esse crime faz parte de um ciclo que cristaliza a imagem de subalternidade e desumanidade contra pessoas negras e, ao mesmo tempo, é alimentado por este imaginário racista que autoriza atitudes discriminatórias.

O enfrentamento ao racismo e aos dispositivos de racialidade (Carneiro, 2005) passa, sem dúvida, pelo comprometimento de todas as esferas da sociedade com um projeto antirracista. O que estamos vendo, portanto, é um passo importante em direção a um tratamento mais adequado do problema que, ao se expressar como injúria racial, reflete toda uma construção que discrimina a população negra em sua coletividade. A nova compreensão, que dá ao crime um caráter público, nos faz avançar em termos sociais para que o combate ao racismo seja efetivo também na esfera jurídica.


¹  Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência, Tecnologia e Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa- INCTI/UnB. Professora orientadora na FLACSO Brasil.

²  Advogado. Especialista em Direitos Humanos e mestre em Desenvolvimento Sustentável (Ufpa). Presidente da Comissão de Promoção à Igualdade Étnico-Racial da OAB Santarém/PA. Coordenador da Rede Jurídica da Amazônia e membro do GT Marielle Franco no Instituto Clima e Sociedade.


REFERÊNCIAS

CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser.  Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo. 2005.

DEUS, Zélia Amador de. Caminhos trilhados na luta antirracista. 1 ed, Belo Horizonte. Autêntica, Coleção Cultura Negra e Identidade. 2020. 

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro.  Corpo Negro caído no Chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Brasília: Brado Negro. 2017.

GONZALEZ, Lélia. Primavera para as Rosas Negras. Diáspora Africana: Editora Filhos da África. 2018.

MOREIRA, Adilson José. Racismo recreativo. São Paulo: Pólen. 2019

NASCIMENTO, Abdias. Genocídio do negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas. 2016.

RAMOS, Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Andes. 1957.

BRASIL. Lei n. 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm. Acesso em 13 jan 23.

______. Lei n. 14.532, de 11 de janeiro de 2023. Altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar como crime de racismo a injúria racial, prever pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou artística e prever pena para o racismo religioso e recreativo e para o praticado por funcionário público. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14532.htm. Acesso em 13 jan 23.

G1. Câmara aprova projeto que eleva punição para condutas racistas em eventos esportivos. 07/12/22. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/12/07/camara-aprova-projeto-que-eleva-punicao-para-condutas-racistas-em-eventos-esportivos.ghtml. Acesso em 13 jan 23.

CNN Brasil. Lula sanciona lei que equipara injúria racial ao crime de racismo. 11/01/23. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/lula-sanciona-lei-que-equipara-injuria-racial-ao-crime-de-racismo/. Acesso em 13 jan 23.

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