Nas últimas semanas, mulheres na África do Sul reivindicaram o fim do silêncio diante da violência extrema contra seus corpos. Os atos ocorreram a partir da convocação do Women For Change, articulado há anos no país, após o brutal assassinato de Liyema Mvandaba, jovem de 18 anos cujo corpo foi encontrado nas proximidades da Universidade Nelson Mandela, em Gqeberha. O feminicídio mobilizou milhares de mulheres nas ruas e produziu uma onda de indignação global.
O Women For Change organizou, para o dia 21 de novembro de 2025, uma greve nacional o “shutdown” convocando mulheres e pessoas LGBTQIA+ a parar o trabalho pago e não remunerado, não gastar dinheiro, vestir preto e participar de um “deitar-lamentação” de 15 minutos em 15 locais distribuídos por todas as províncias da África do Sul.
O que aconteceu na África do Sul não é um evento isolado: é resultado de um histórico de enfrentamento ao racismo, ao sexismo e à negligência institucional que estrutura a vida das mulheres negras. A forma como a mobilização se organizou guarda profunda afinidade com o legado teórico-político que orienta as lutas no Brasil: corpos negros como territórios de disputa; violência de gênero como mecanismo de controle social; e a recusa em aceitar que nossas mortes sejam normalizadas.
A mobilização nacional e a pressão das ativistas e dos movimentos feministas alcançaram resultados importantes. A mobilização influenciou diretamente as posições apresentadas pelo governo sul-africano no âmbito do G20; é preciso reconhecer também a importância do W20 tanto Brasil quanto África do Sul, garantindo que o tema da violência contra mulheres e meninas fosse explicitamente tratado como uma questão urgente de direitos humanos e responsabilidade de Estado.
Esse movimento se refletiu diretamente na Declaração de Líderes do G20, que afirma:
“We reaffirm our full commitment to the empowerment of women and girls… We condemn all forms of discrimination against women and girls and recall our commitment to end gender-based violence and the killing of women and girls because of their gender… To this end, we commit to take accelerated action to eradicate all forms of violence including sexual violence and harassment… occurring in public and private life, online and offline.”
(G20 Leaders’ Declaration, 2025, §101)
Tradução livre para fins de compreensão:
“Reafirmamos nosso total compromisso com o empoderamento de mulheres e meninas… Condenamos todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas e reiteramos nosso compromisso de acabar com a violência de gênero e com o assassinato de mulheres e meninas por motivo de gênero… Para isso, comprometemo-nos a tomar ações aceleradas para erradicar todas as formas de violência, incluindo violência sexual e assédio… ocorrendo na vida pública e privada, online e offline.”
Além disso, a pressão pública, intensificada pela mobilização nacional convocada pelo Women For Change, levou ao que já está sendo considerado um marco histórico, a confirmação oficial de que a Violência Baseada em Gênero e o Feminicídio serão classificados como um Desastre Nacional1. Essa declaração não apenas reconhece a gravidade da crise, mas abre caminho para mecanismos excepcionais de resposta estatal, mobilização de recursos e coordenação emergencial.
A conquista foi reconhecida publicamente pelo próprio movimento: “We did it. This is history made by the people.” (“Conseguimos. Isto é história feita pelo povo.”)
E de fato é. O que se viu na África do Sul é demonstração direta de que a organização de mulheres, sobretudo mulheres negras, consegue deslocar prioridades institucionais, alterar agendas de governo e produzir respostas antes consideradas politicamente impossíveis.
Nesse contexto, a declaração presidencial não é um gesto isolado ou voluntarista: é resultado direto da força coletiva, da indignação transformada em ação e da capacidade das mulheres negras de fazer o Estado se mover quando vidas estão em risco.
Essa mobilização expressa uma pedagogia política profundamente enraizada: mulheres negras, historicamente colocadas à margem, colocam o Estado em movimento e nos fornecem utopias e concretudes para um outro projeto possível de sociedade.
Feminicídio segue como uma ferida aberta compartilhada pelo Sul Global
A África do Sul ocupa há anos posições alarmantes nos índices de violência contra mulheres. O feminicídio, longe de ser exceção, é uma realidade cotidiana. No Brasil, o cenário é igualmente devastador: mais de três mulheres são assassinadas por dia, majoritariamente negras.
Quando o movimento de mulheres negras afirma que o feminicídio não é apenas um crime, mas um sintoma de um sistema que desumaniza mulheres racializadas, estão evidenciando algo que conecta Brasil e África do Sul: a violência é resultado de estruturas coloniais ainda ativas, que produzem vulnerabilidade, desigualdade e morte.
Pontes com o Brasil: bem viver, território e mobilização
Assim como o Women For Change reorganizou a pauta pública na África do Sul, no Brasil mulheres afrodescendentes têm construído um horizonte político baseado no bem viver — uma agenda que articula o enfrentamento ao feminicídio, a defesa dos territórios, a saúde mental comunitária, a participação política e a crítica às desigualdades estruturais.
Do movimento de mães e familiares vítimas da violência de Estado às organizações de mulheres da sociedade civil, passando por coletivos comunitários, terreiros e quilombos urbanos e rurais, as mulheres têm construído políticas de vida para resistir às políticas de morte.
A agenda do bem viver não é apenas uma resposta à violência: é a aspiração de futuros possíveis. Futuros nos quais o Estado deixa de operar sob a lógica da necropolítica e passa a garantir dignidade para todas as pessoas. Futuros que deslocam o centro da formulação política para as experiências de mulheres racializadas.
O que vimos no dia 21 na África do Sul — e o que veremos no dia 25 de novembro no Brasil, assim como em outros territórios da diáspora africana — é uma conexão orgânica em que os movimentos de mulheres criam os instrumentos necessários para sua própria proteção, libertação e transformação social.
As demandas por justiça para Liyema ecoam as demandas por justiça para as brasileiras vítimas de feminicídio diariamente. O posicionamento do governo sul-africano no G20 ecoa as disputas feitas pelas brasileiras, especialmente no âmbito do W20 Brasil, para inserir raça e gênero nas agendas globais. A declaração proferida pelo presidente Ramaphosa ecoa a urgência de que todos os chefes de Estado reconheçam que combater o feminicídio não é uma política setorial: é um imperativo civilizatório e uma condição para o desenvolvimento.
O que une essas lutas é o princípio que atravessa fronteiras para afirmar que não há democracia possível onde mulheres negras continuam morrendo.
E onde houver mulheres negras se levantando, haverá deslocamento de estruturas, invenção de estratégias e construção de futuros mais justos.
Estamos em marcha, pois para nós Luto é verbo.
- Desastre Nacional é uma classificação jurídica e administrativa utilizada por Estados para reconhecer oficialmente que determinado evento ou fenômeno ultrapassa a capacidade de resposta do sistema governamental regular, exigindo medidas extraordinárias, recursos emergenciais e coordenação intersetorial. Essa declaração mobiliza três importantes dimensões: Reconhecimento formal da gravidade, ativação de instrumentos excepcionais de política pública e obrigação do Estado de agir. ↩︎