O Movimento de Mulheres Contra o Feminicídio na África do Sul — Ecos e Pontes com o Brasil

23/11/25
Por Letícia Leobet

Nas últimas semanas, a África do Sul mulheres reivindicaram a   silêncio diante da violência extrema contra seus corpos. Os atos ocorreram com uma chamado do Women For Change, articulado há anos no país,após o brutal assassinato de Liyema Mvandaba, jovem de 18 anos, cujo corpo foi encontrado nas proximidades da Universidade Nelson Mandela, em Gqeberha. O feminicídio mobilizou milhares de mulheres nas ruas e produziu uma onda de indignação global.

A Women For Change mobilizou para odia 21 de novembro de 2025 uma greve nacional — “shutdown” — que convoca mulheres e pessoas LGBTQIA+ a parar o trabalho pago e não‐remunerado, a não gastar dinheiro, a vestir preto, e a participar de um “deitar‐lamentação” de 15 minutos em 15 locais em todas as províncias da África do Sul. 

O que aconteceu aqui na África do Sul não é um evento isolado: é o resultado de um histórico de enfrentamento ao racismo, ao sexismo e à negligência institucional que estrutura a vida de mulheres negras. A forma como a mobilização se organizou guarda profunda afinidade com o legado teórico-político que orienta também as lutas no Brasil: corpos negros como territórios de disputa; violência de gênero como forma de controle social; e a recusa em aceitar que nossas mortes sejam normalizadas.

A comoção nacional e a pressão incansável das feministas e ativistas  alcançaram resultados importantes. A mobilização influenciou diretamente as posições apresentadas pelo governo sul-africano no âmbito do G20, é preciso reconhecer a importância do W20 África do Sul, garantindo que o tema da violência contra mulheres e meninas fosse explicitamente tratado como questão urgente de direitos humanos e responsabilidade de Estado.

Além disso, a pressão pública — intensificada pela mobilização nacional convocada pelo Women For Change — levou ao que já está sendo considerado um marco histórico: no G20 Social Summit, em 20 de novembro de 2025, o presidente Cyril Ramaphosa confirmou oficialmente que a Violência Baseada em Gênero e o Feminicídio serão classificados como um Desastre Nacional. Essa declaração não apenas reconhece a gravidade da crise, mas abre caminho para mecanismos excepcionais de resposta estatal, mobilização de recursos e coordenação emergencial.

A conquista foi assumida publicamente pelo próprio movimento: “We did it. This is history — made by the people”.

E de fato é. O que se viu aqui na África do Sul é demonstração direta de que a organização de mulheres — sobretudo mulheres negras — consegue deslocar prioridades institucionais, alterar agendas do governo e produzir respostas que antes eram consideradas politicamente impossíveis.

Neste contexto, a declaração presidencial não é um gesto isolado ou voluntarista:é resultado direto da força coletiva, da indignação transformada em ação e da capacidade das mulheres de fazer o Estado se mover quando vidas estão em risco.

Essa mobilização expressa uma pedagogia política profundamente enraizada: mulheres negras, historicamente colocadas à margem, colocam o Estado em movimento. É o que Angela Davis descreve como “revoluções do cotidiano” e que Sueli Carneiro aponta como a capacidade de transformar a dor coletiva em ação política organizada.

Feminicídio segue como uma ferida aberta compartilhada pelo Sul Global

A África do Sul ocupa há anos posições  nos índices de violência contra mulheres. O feminicídio, longe de ser exceção, é uma realidade cotidiana. No Brasil, o cenário é igualmente devastador: são assassinadas mais de 3 mulheres por dia, majoritariamente afrodescendentes.

Quando movimentos feministas negros denunciam que o feminicídio não é apenas um crime, mas um sintoma de um sistema que desumaniza mulheres racializadas, estão afirmando algo que conecta Brasil e África do Sul: a violência é resultado de estruturas coloniais ainda ativas, que produzem vulnerabilidade, desigualdade e morte.

Pontes com o Brasil: bem viver, território e mobilização

Assim como o Women For Change reorganizou a pauta pública na África do Sul, no Brasil mulheres afrodescendentes têm construído um horizonte político baseado no bem viver — uma agenda que articula o enfrentamento ao feminicídio, a defesa dos territórios, a saúde mental comunitária, a participação política e a crítica às desigualdades estruturais.

Do movimento de mães e familiares vítimas da violência de Estado às organizações de mulheres da sociedade civil, passando por coletivos comunitários, terreiros e quilombos urbanos e rurais, as mulheres têm construído políticas de vida para resistir às políticas de morte.

A agenda do bem viver não é apenas uma resposta à violência: é a aspiração de novos futuros possíveis. Futuros nos quais o Estado deixa de ser operador da necropolítica e passa a ser garantidor de dignidade para todas as pessoas.  Futuros que deslocam o centro da formulação política para as experiências de mulheres afrodescendentes. 

O que vimos  neste dia 21 na África do Sul e o que veremos no dia 25 de novembro no Brasil e que acontece em outros contextos da diáspora africana se trata de uma conexão orgânica  em que mulheres negras criam  os instrumentos necessários para sua própria proteção, libertação e para a transformação social.

As demandas por justiça para Liyema ecoam as demandas por justiça para as brasileiras vítimas de feminicídio diariamente. O posicionamento do governo sul-africano no G20 ecoa também as disputas das brasileiras, em especial do W20 Brasil,  para inserir raça e gênero nas agendas globais. A declaração do presidente Ramaphosa ecoa a urgência de que todos os chefes de Estado reconheçam que combater o feminicídio não é uma política setorial: é um imperativo civilizatório.

O que une essas lutas é o princípio que atravessa fronteiras para afirmar que não há democracia possível onde mulheres negras continuam morrendo. E onde houver mulheres negras se levantando, haverá sempre deslocamento de estruturas, invenção de estratégias e construção de futuros mais justos.

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