‘O negro brasileiro ainda não alcançou a sua segunda abolição’, afirma Antônio Carlos Cortês

O escritor também lembra o papel das sociedades fundadas por ex-escravizados na elevação da auto estima do povo negro

FONTEPor Marcelo Ferreira, do Brasil de Fato
Empossado na Academia Rio-Grandense de Letras em abril deste ano, Antônio Carlos Côrtes é o terceiro negro a ocupar uma cadeira nos 122 anos da entidade (Foto: Marcelo Ferreira)

Terceiro negro a chegar à Academia Rio-Grandense de Letras em 122 anos da instituição, o advogado, psicanalista, jornalista e escritor Antônio Carlos Côrtes entende que os afrodescendentes precisam de uma segunda abolição porque a primeira foi “uma lei oca, vazia”.

Autor dos livros Bailarina do sinal fechado, Rua da Praia 40⁰ e Degraus da Vida, ele foi, nos anos 1970, um dos jovens fundadores do Grupo Palmares, que nasceu batalhando pela criação do Dia da Consciência Negra em oposição ao 13 de Maio. Também presidiu a Sociedade Floresta Aurora, surgida 151 anos atrás para oferecer um enterro digno aos escravizados evitando que fossem sepultados em vala comum.

Sua posse na Academia Rio-Grandense de Letras ocorreu em 28 de aril de 2023, encerrando um período de 95 anos sem negros no quadro de 40 distintos acadêmicos efetivos da entidade. Foi reconhecido por suas obras literárias e sua trajetória.

Neste diálogo com Brasil da Fato RS, Cortês fala sobre a permanência do racismo, a necessidade de confrontá-lo e, apesar de tudo, a ascensão de novos escritores negros que abrem caminho nas letras ainda majoritariamente brancas deste Brasil do século 21.  

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato RS – Na cerimônia de posse, na Academia Rio-Grandense de Letras, você trouxe um ditado sul-africano, “Eu sou porque nós somos”. Explique o que isso representa em relação a esta conquista.

Antônio Carlos Cortês – Representa o coletivo. Eu não sou eu. Represento uma comunidade, um povo.

Cortês no dia da posse, realizada no Salão Mourisco da Biblioteca Pública do Estado (Foto: Divulgação/Academia Rio-Grandense de Letras)

Por volta de 1970, quando o Grupo Palmares nem tinha esse nome ainda, levei para o grupo um livro do Edson Carneiro, o Quilombo de Palmares. Porque entendia que tínhamos que ter alguma coisa de alguém nosso e não o que os historiadores colocavam em termos da história do negro no Brasil. Procurei descobrir a data de nascimento do Francisco, que era o Zumbi, e não consegui. Mas nessa obra encontrei a data de morte: 20 de novembro de 1695 no Quilombo de Palmares. Aí o grupo leu o livro. Nós éramos seis. Quatro botaram a cara para bater e dois ficaram ocultos porque era período da ditadura e se nós quatro fôssemos eliminados, esses dois dariam sequência à nossa temática, que era maior que as nossas vidas no nosso entender.

Tipo a Sociedade Floresta Aurora. A representação maior é que a história da Floresta Aurora era maior que a liberdade, enquanto figura representativa. Então por isso, a partir dali, não fiz nada sozinho mas de uma forma coletiva. Levando a luta como jornalista mas, como advogado, levando as lutas dos processos criminais, dos danos morais contra os opressores.

Como dizia o Solano Trindade: “Irmão negros oprimidos em qualquer parte do mundo são meus irmãos. Irmão opressores em qualquer parte do mundo, não são meus irmãos”. Este sentido sempre norteou a minha vida. Então tudo que conquistei, eu conquistei para aquilo que eu fui conquistado. Nunca fiz nenhuma campanha para galgar nada que recebi. Tudo veio espontaneamente.

BdF RS – Você é terceiro negro a ocupar uma cadeira na academia. É importante ressaltar este dado, levando-se em conta 122 anos de história da entidade. Isso é representativo para a visibilidade do povo negro e sua valorização?

Cortês – É muito representativo. Veja bem, o primeiro negro a integrar a academia foi Paulino Azurenha. Ele trabalhava no Jornal do Comércio junto com Caldas Júnior e Mário Totta. Aí, o Caldas Junior saiu para fundar o Correio do Povo, mas já combinado com Paulino Azurenha que ia levar ele para lá assim como o Mário Totta.

Paulino Azurenha, as pessoas nem sabem quem é. Só sabem que tem uma rua ali no Partenon com este nome. E Paulino Azurenha assinava seus artigos como Leo Pardo quando foi para o Correio do Povo. Morreu em 1909. Depois dele, quem veio para a academia foi o santamariense Francisco Ricardo. Era poeta, juiz distrital e a sua obra falava muito de amor. A inspiração dele veio germinando quando foi estudar no Rio de Janeiro e sentiu saudades da mãe, dos seus amores. Era um romântico. Faleceu em 1927 aos 33 anos.

Com o falecimento não teve outro negro ocupando cadeira. E agora eu cheguei. Ou seja, 95 anos depois. Por isso que louvo as últimas administrações da academia, especialmente essa agora do presidente Airton Ortiz. Mas é uma sequência do trabalho anterior. A academia precisa se abrir no sentido de ter a representação de todos os segmentos.

Embora eu tenha sido secretário geral da Junta Comercial e assessor da Comissão Especial da Educação da Assembléia Legislativa, sempre mantive o pé na comunidade, vinculado às escolas de samba, à cultura popular. 

Hoje o Rio Grande do Sul é o estado mais racista do Brasil

BdF RS – Neste assunto então a gente chega ao ponto do apagamento do negro na história do Rio Grande do Sul nos mais diversos aspectos. Como compreendes esta questão? Fala-se que o Rio Grande do Sul é um estado muito racista. O Rio Grande permanece desvalorizando a relevância do povo negro?

Cortês – Sem dúvida. Sempre afirmei, alguns me contestavam, que o Rio Grande do Sul era o estado mais racista do Brasil. Alguns diziam que só perdia para Santa Catarina. Mas hoje o Rio Grande do Sul é sim o estado mais racista do Brasil. Veja bem este trabalho escravocrata, as vinícolas do Vale dos Vinhedos em Bento Gonçalves, Garibaldi, Caxias do Sul, aquela região toda, em que houve a denúncia. Pegavam os negros na Bahia, prometiam uma coisa e não cumpriam, e eles eram obrigados a trabalhar de sol a sol praticamente, um trabalho de escravização pura.

Sou um dos advogados que está processando essas vinícolas numa ação civil pública e coletiva. Ninguém está querendo nada para nós. É para reverter (a indenização) para um fundo de políticas afirmativas.

“Se fomos examinar o generalato Brasileiro, tu não encontras negros” (Foto: Marcelo Ferreira)

Com a ponta do iceberg que se levantou aqui, afirmo que, no Brasil, o negro brasileiro ainda não alcançou a sua segunda abolição. A primeira abolição já foi oca, vazia. A Lei Áurea assinada pela princesa Isabel dizia o quê? Artigo primeiro: está abolida a escravidão no Brasil. Artigo segundo: revogam-se as disposições em contrário. Não tinha nenhuma fundamentação, nenhuma justificativa do que seria feito com aqueles cinco milhões de negros que chegaram no Rio de Janeiro. Então ali foi a primeira abolição simbólica e hoje está comprovado que não houve a segunda abolição.

Se fomos examinar o generalato brasileiro tu não encontras negros. É uma minoria. Se formos examinar o executivo, em todos os estados do Brasil, não têm negros. Se formos examinar as assembleias legislativas também não têm negros e quando têm é uma exceção que confirma a regra. Então, quer no executivo municipal, executivo estadual, executivo federal, no legislativo, no judiciário, no Ministério Público, tu não encontras negros. Ou seja, se o negro é a maioria no país, como é, mais de 65%, aí é como dizia o Carlos Santos (ex-deputado estadual e primeiro negro a ocupar a presidência da Assembléia Legislativa/RS), não pode existir racismo num país de mestiços. Como dizia meu sogro, este aí não tem coragem de colocar a foto do avô dele na sala. Porque os mais claros, às vezes, são fruto do estupro feito com as escravas.

O Brasil perde uma grande oportunidade de utilizar a criatividade e o talento do negro. Porque o negro é muito talentoso e competente. O próprio Toynbee (Arnold J. Toynbee, historiador inglês) veio assistir ao desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro e ficou encantado. Disse: “Olha, se eu pegar estes negros aqui e botar na NASA, em cinco anos eles botam o homem na Lua. Agora se eu pegar os técnicos da NASA e colocar para fazer este desfile vão ficar a vida toda e não vão conseguir”. 

Nossos ancestrais vieram para o Brasil a bordo de um campo de concentração flutuante

BdF RS – Dessa criatividade que você fala, que problemas o não aproveitamento disso acarretou para o desenvolvimento social do Brasil?

Cortês – Um atraso na educação. O único que se preocupou com a educação foi Leonel de Moura Brizola, com Darcy Ribeiro. Veja o que acontece com a Coreia do Sul. Foi aniquilada na 2ª Guerra Mundial, depois teve a guerra com a Coreia do Norte e o que eles fizeram? Investiram em educação. Hoje a educação deles está nos primeiros planos do mundo. Imagina se o Brasil, com estes oito milhões e tantos de km², pudesse ter investido na educação de 65 milhões de negros que aqui vieram e aí estão?

Eu sou remanescente. Os nossos ancestrais vieram para o Brasil a bordo de um campo de concentração flutuante. E com todo este genocídio que fizeram conosco, estamos aqui. Sou representante disso, fui presidente aos 26 anos da Sociedade Floresta Aurora, que  nasceu para dar um enterro digno para os escravizados. Até então eles eram enterrados em vala comum. Como foi feito agora na pandemia.

BdF RS – Você é advogado, escritor, radialista, psicanalista, várias atividades. Seu primeiro livro foi publicado em 2014, porém há mais de 50 anos vem escrevendo sobre o povo negro e suas inquietações. Foi um dos fundadores do Grupo Palmares, que idealizou o Dia da Consciência Negra. Esta trajetória foi reconhecida pela academia. De que forma a luta contra o racismo está marcada em você?

Cortês – Está marcada no meu DNA. No Brasil ainda existe o preconceito, o racismo e a segregação. O que é a segregação? É pegar o povo, como o pessoal que moravam aqui na Ilhota, na confluência da Ipiranga com a Érico Veríssimo, onde hoje está a RBS, o Centro de Cultura Lupicínio Rodrigues, antes tinha a Escola de Samba Imperadores. Pegaram aquele povo, colocaram tudo em um ônibus e jogaram para a Restinga, a 30 km da cidade. Isso é segregação.

E o racismo o que é? É afirmar que existe a preponderância de uma raça sobre outra, quando o que existe é uma raça humana. E o preconceito o que é? É não conhecer o nobre jornalista que me entrevista e dizer que eu não gosto dele. Mas, na medida que eu vou conversar com ele e ele me entrevista, vejo que eu estou errado na opinião que tinha sobre ele. Eu estava estabelecendo um pré-conceito. Então nós, negros, sofremos esta trilogia constante a todo momento, a toda hora sofrendo preconceito, racismo e segregação.

BdF RS – Falando um pouco da tua história com o Grupo Palmares, que foi tão marcante, qual era o teu papel no grupo?

Cortês – Eu era um agitador cultural. O grupo precisava de um norte e eu, ao buscar este livro do Edson Carneiro, do Quilombo de Palmares, e outras obras, procurava dizer aos meus irmãos que a Lei Áurea não está com nada. É uma lei oca e vazia. Isso despertou os meus amigos, o professor Oliveira Ferreira da Silveira, o Ilmo Silva, o Vilmar Nunes. Então nós quatro botamos a cara para bater, como disse antes, e o Luís Paulo Assis dos Santos e o Jorge Antônio dos Santos, estes ainda vivos, foram aqueles que ficaram ocultos.

Outro grande agitador, como eu, era o Jorge Antônio dos Santos. Mas entendíamos o seguinte – era o princípio do Agostinho Neto (líder do Movimento Popular de Libertação de Angola, o MPLA, e primeiro presidente do país): ´Todos no mesmo barco e não importa qual de nós será o timoneiro`. Se a ditadura nos eliminar, aquele que puder vai dar sequência com os demais ou deixar a critério do levante, mas não deixávamos nada escrito para não comprometer os nossos familiares, amigos e irmãos.

Na Floresta Aurora, tínhamos um grupo de teatro de que eu participava e também o Jorge Antônio dos Santos e o Vilmar Nunes. De certa forma, o Grupo Palmares nasceu dentro da Floresta Aurora. Depois é que agregamos a participação do Oliveira e dos demais. Mas foi no teatro, quando fazíamos peças contra a guerra, contra isso, contra aquilo, já era com o sentido de despertar a valorização do negro requerendo a cidadania.

Primeiro Ato Evocativo ao 20 de novembro, realizado pelo Grupo Palmares, em 1971, no Clube Marcílio Dias em Porto Alegre (Foto: Acervo Oliveira Silveira)

BdF RS – O que é a Sociedade Floresta Aurora e o que realizou?

Cortês – Ela foi fundada por ex-escravizados e por negros forros que eram aqueles que compravam a sua liberdade. Entendiam os nossos fundadores, há 151 anos, que, como cidadãos, merecíamos um enterro decente. Não ser enterrado em vala comum. Arrecadava-se dinheiro, se fazia vaquinhas para dar um enterro digno e colocar lá na sepultura: aqui está sepultado o fulano de tal, morreu no dia tal, tudo direitinho. Este era o sentido.

Esses fundadores tinham atividades profissionais como marceneiros, carpinteiros, pedreiros, que já tinham a visão religiosa, não só de matriz africana, mas também católica, e se criou a Irmandade dos Homens Pretos. A igreja do Rosário, aqui de Porto Alegre, na rua Vigário José Inácio, a original, foi construída por eles. Depois, o Dom João Becker, arcebispo de Porto Alegre, mandou desmanchar porque não queria nada dos negros aqui. Aí construíram a que está ali até hoje. Mas nem assim afastou. Já tínhamos aquela coisa de nação dos nossos ancestrais. Nossa comunidade negra de hoje, nos últimos tempos também, frequenta a igreja do Rosário maciçamente. Nosso culto religioso continua ali. Acho que todos os caminhos levam a Deus. Não temos nenhum preconceito, nenhuma discriminação de qualquer outra religião.

Tanto eu, como os outros do Palmares,  fomos chamados para depor na Polícia Federal

BdF RS –  Qual a relevância da Floresta Aurora e do Grupo Palmares, nas conquistas de hoje?

Cortês – Penso que tanto a Floresta Aurora, como as outras sociedades, tem a também centenária Associação Satélite Prontidão, elevam a auto estima do negro. Elas congregam, estimulam aquilo que falei antes, a educação. E tem a preservação da cultura negra.

Por exemplo: eu fui empossado agora dia 9 de março de 2023 no salão Mourisco da Biblioteca Pública do estado, onde hoje a Ana Maria, que é negra, é a diretora. Primeira diretora negra da Biblioteca Pública do Estado com mais de 100 anos. Na Biblioteca Pública não entrava negro. E foi lá que entrei no período da ditatura para buscar o livro do Edson Carneiro. Naquele período da ditatura tinha outros livros que eu pegava, o do Abdias do Nascimento, Dramas para Negro e Prólogos para Brancos e outros. E acontecia o seguinte, depois que eu pegava o livro uma ou duas vezes, o livro sumia. Porque retiravam o livro dali?

Tanto eu, como todos os outros do Palmares, num determinado período,  fomos chamados para depor na Polícia Federal. Para explicar o que estávamos fazendo com este Grupo Palmares. E dizíamos o quê? Que nossa luta não era contra os brancos, que a nossa luta era a favor dos negros. É diferente. Queríamos contar a nossa história, do nosso jeito com as nossas fontes.

Só eu de negro e uns 20 brancos. Vi que o olhar do recrutador era cruel

BdF RS – Como e quando você tomou consciência que a discriminação racial era um ponto forte suficientemente para te mover a levar isso como uma causa?

Cortês – Com meu saudoso pai Egídio Ribeiro Cortes. Quando ele lia  o Correio do Povo ficava furioso quando aparecia na manchete ´Assalto a banco`, e colocavam a foto de um negro, quando eram quatro elementos. Três brancos e eles colocavam um negro. Não falavam dos não negros que estavam ali. E ele ficava buzina da cara com aquilo e sempre nos alertava, eu e meus irmãos: “Vocês tomem muito cuidado, sempre saiam com documento porque, para a polícia, o negro sempre vai ser o marginal, sempre vai ser ladrão”.  

Quando completei 18 anos queria ter a minha liberdade financeira e procurei um emprego mais formal, embora trabalhasse desde os 13, 14 anos. Uma agência de publicidade pedia um redator. Pediram que fizesse uma redação de próprio punho e encaminhasse, o que fiz. Recebi um telegrama para que comparecesse lá. Compareci. Só eu de negro e uns 20 brancos. Fizeram uma entrevista e vi que o olhar para mim, do recrutador, era cruel. Disse para aguardar um novo chamado. Depois saímos conversando, os outros que estavam ali, e pelo que eles mandaram a gente fazer, uma outra redação, senti que tinha me saído muito bem na comparação com os demais. Senti, acho que estou dentro. No outro domingo, saiu o mesmo anúncio no jornal, só que dizia o seguinte: ´Enviar fotografia`… Enviar fotografia porque não queriam, né.

Fiz concurso de locutor numa grande emissora de Porto Alegre. Inscreveram-se lá 600 ou 700 pessoas e fui selecionado entre os 10. Me chamaram também. E o gerente da rádio: ´Mas tu que és o Antônio Carlos Cortês?` Sim, sou eu. `Olha, quero te dizer que  vamos fazer um outro teste e tu aguarda o chamado`.

Depois outra emissora de televisão pedia apresentador. Fui fazer. Já sabia que tinha as coisinhas mas sempre fui de botar a cara. Aí também a mesma coisa. O pessoal comentou que fiz o melhor teste. Era texto em inglês, francês e alemão. E não fui chamado. Vinte anos depois fui saber, por um ex-funcionário da empresa, que fôra o melhor. Mas o diretor teria dito:´Pois é, mas aquele cabelo dele é muito grande`. Na época, eu usava black power. Sequer pensaram em ver se eu concordava em cortar um pouco o cabelo. Foi a desculpa  para não me chamar. Tudo isso me motivou a ser um ativista dos direitos civis.

“Tem algumas coisas que só tendo a pele negra para avaliar direito” (Foto: Marcelo Ferreira)

BdF RS – Esta situação passa despercebida pelas pessoas brancas. Por exemplo, se eu colocar um chinelo e ir no shopping eu vou passar tranquilo. Mas se for uma pessoa negra poderá receber outro olhar do segurança…

Cortês – Sequer entra.

BdF RS – No seu caso isso despertou esta consciência de luta, mas para outras pessoas pode apenas despertar uma rebeldia. Pode se manifestar de outras formas como a gente vê na questão da violência. O que acha?

Cortês – Sou psicanalista também. Noto nos meus pacientes, principalmente negros, que quando se tratam com colegas brancos, muitas vezes ouvem, ´Não, isso aí não existe. Que vitimização! Está fazendo uma dramatização!`

Tem algumas coisas que só tendo a pele negra para avaliar direito.

Desde as primeiras cadeiras que cursei na área de filosofia na Faculdade de Direito da UFRGS, em 1976, isso me encantou. Eu já usava a psicanálise nos meus processos criminais e processos de família. Teve um caso muito pitoresco. Fiz um júri onde eram dois acusados. Um negro e um branco acusados do mesmo crime, embora os dois fossem tecnicamente inocentes. O que aconteceu com o conselho de sentença? Absolveu o branco e condenou o negro. Embora a pena fosse branda, o juiz me chamou na bancada e me disse: ´O senhor não vai recorrer, né?` Perguntei porquê? ´Se recorrer e o tribunal determinar novo julgamento, o novo julgamento será pior`. Falei com meu cliente e ele também não quis (recorrer). A pena era de aproximadamente um ano. O que importa é o fato. Vivemos numa sociedade extremamente racista e preconceituosa. É a dura realidade.

BdF RS – Vamos falar um pouco sobre literatura. Temos escritores negros em destaque hoje em dia no estado. Duas escritoras negras levaram este ano o Prêmio Açoriano de Literatura: a vencedora infantil Fabiana Sasi e, na narrativa longa, Taiasmin Ohnmacht. Temos também a notoriedade de Jeferson Tenório e José Falero, que são expoentes de uma nova literatura no Rio Grande do Sul. Estamos num momento de visibilidade da produção literária negra?

Cortês – Entendo, por exemplo, que o meu companheiro do Grupo Palmares, o Oliveira da Silveira, deveria ter recebido todas as homenagens que são prestadas agora, que lhes tivessem sido prestadas em vida. Não sofreu este aplauso porque era negro. É um dos precursores, abriu caminho, como o próprio Paulino Azurenha. Porque ele assinava com pseudônimo de Leo Pardo? Tinha a ver com as raízes africanas.

Estes que mencionastes são extremamente talentosos e deveriam estar ocupando outros espaços. O Tenório foi patrono da Feira do Livro (de Porto Alegre), mas num período que a feira foi virtual. Não tinha presença física das pessoas, conversando, vendo ele passear na feira, dialogando.

Estes excelentes escritores e escritoras, poetas, e aqui eu faço um alongamento na tua pergunta, o talento muitas vezes destes escritores, alguns como o Ronald Augusto e o Jones Lopes da Silva foram fazer sambas-enredo que são verdadeiras jóias raras na rima, na construção. Os que tu mencionas merecem todo o aplauso, porque a nossa própria comunidade negra começou a ter oportunidade de ter acesso a obra deles.

O negro só não se destaca onde não tem oportunidade

BdF RS – Você comentou esta produção de enredo e me veio à cabeça que talvez, também, este destaque acabe ocorrendo quando o povo negro se encaixa dentro dos padrões brancos. Por exemplo, existem o hip hop, slamm, várias manifestações artísticas produzidas nas periferias que não têm esta valoração artística, mais conceitual, mais aceita como produção artística relevante.

Cortês – É um talento nato. Na minha posse agora, em vez de fazer um coquetel com espumante e salgadinho, eu ofertei um recital. Levei um menino, o João Pedro Filantro, autodidata, pianista clássico. Ouve as peças clássicas e sai tocando. Fez um breve recital mais de 80 pessoas no salão Mourisco, que ficaram encantadas.

A própria (ginasta) Daiane do Santos, campeoníssima, foi buscada numa praça pública onde estava fazendo ginástica. Deram oportunidade, evoluiu e passou a ser uma das principais referências no mundo. O próprio João do Pulo, o Adhemar Ferreira da Silva, que de tuberculoso foi em Roma competir e ganhar medalhas para o Brasil. O negro só não se destaca onde não tem oportunidade.

A ´Lei do boi` era uma política de cotas

BdF RS – Falando em oportunidade, qual a importância das políticas públicas de reparação social nas últimas décadas? Visto que neste momento temos você na academia, temos escritores renomados, temos a bancada negra na Assembléia Legislativa. Que papel têm estas políticas públicas, as cotas, por exemplo?

Cortês – Sou totalmente a favor das cotas. Como dizia meu colega de escritório, dr. Osvaldo Ferreira dos Reis, o Vavá: ´O negro pode entrar pelas cotas. Mas não sai pelas cotas. Se ele não tiver competência não vai sair`. As cotas procuram diminuir um pouco o fosso da desigualdade social. 

Eu sou de uma época mais antiga. Nos anos 1960, tinha a ´Lei do boi`. Na ´Lei do boi`, o filho do agricultor e o filho do fazendeiro entravam na faculdade sem sequer (fazer) vestibular. Era uma política de cotas. Na área tributária, o próprio imposto de renda abarca algumas classes. Vale tudo no sentido de fazer uma reparação. O correto seria uma indenização para os negros. Pelos trabalhos forçados sofridos na escravização. Como isso não é possível, tecnicamente, tem que se dar pela materialidade de encurtar este fosso da desigualdade.

BdF RS – Você avalia que ainda há muito o que ser conquistado?

Cortês – Muito! Porque a consciência de uma doença nos leva a cura. E o Brasil tem um tecido doente. Este tecido doente faz com que a reprodução venha desde a época da descoberta do Brasil, quando se criaram polícias para proteger a monarquia. Foi indo e é a polícia de hoje. Está comprovado. Não estou fazendo falsete. Quem é que é assassinado pela polícia? O jovem negro nas periferias.

Fui professor na Academia de Polícia e dizia aos meus alunos, ´Como é a hierarquia da polícia? Vem o coronel, vem o capitão, sargento e chega no soldado. Está errado. Na verdade, vem o cidadão e depois o soldado. O cidadão está em primeiro lugar`. Encontrei muitas vezes, no Judiciário, meus ex-alunos exercendo a função de agente penitenciário, policial, e eles diziam ´Bah, professor cheguei na delegacia e o delegado disse para esquecer tudo o que aprendi na academia`. 

Se tu não te enxergas como vais querer ter estima alta?

Aquele livro, Rota 66, do Caco Barcelos, com relação à Rota, de São Paulo, (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, violento grupo da PM paulista), é um caso concreto. Como acontece com o Caveirão no Rio, nas favelas. Há um proverbio latino que diz ´Quando as coisas são claras não precisam comprovação`. Ligas a televisão no Brasil e parece que estás em Helsinque. Não tem negros – hoje, até que tem alguns que são referências poucas. Se tu não te enxergas como vais querer ter estima alta?

BdF RS – Tens alguma outra colocação?

Cortês – Quero cumprimentar vocês. Não por me entrevistar. Mas por ter como pauta as questões raciais, porque estas publicações ajudam  a despertar. A palavra despertar tem o ´des` e o ´apertar`. Então, ajuda a apertar o dez para ajudar a diminuir o fosso da desigualdade social. Ajuda a fazer com que, até mesmo brancos, comecem a se dar conta do que fizeram seus antepassados. E dêem oportunidade. Nas segundas-feiras, saiam nas ruas e vão ver nas filas de emprego no SINE. Quem é a maioria, quem não tem a mesma oportunidade? Antigamente, nem tanto antigamente, colocavam lá uma forma de preferência que era exatamente para eliminar, às vezes, questão da apresentação e até uns testes que eram jogadas ensaiadas. Cumprimento a mídia brasileira quando abre esta janela para focar a questão racial.

BdF RS – É a nossa missão, enquanto Brasil de Fato, ser uma mídia que está do lado das questões do povo brasileiro. De dar espaço não somente em momentos e datas especiais, mas sempre que possível trazer as questões do povo negro.

Cortês – O nome está dizendo, Brasil de Fato. Existe um Brasil de fato e existe um Brasil de direito. Na medida que é Brasil de Fato, é para mostrar a realidade como ela é. Esta é a realidade do povo brasileiro. Cumprimento vocês mais uma vez.

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