O primeiro quilombo urbano reconhecido no Brasil

Fonte: Ecodebate-

O primeiro quilombo urbano reconhecido no Brasil. Um paradigma. Entrevista especial com Onir de Araújo

Pela primeira vez, um quilombo urbano recebeu a titulação que o reconhece como um grupo negro histórico e, com isso, demarcou suas terras, indo contra toda uma pressão imobiliária, administrativa e do racismo que ainda existe. Trata-se do Quilombo da Família Silva, localizado em Porto Alegre. A IHU On-Line conversou com o advogado do quilombo, Onir de Araújo, por telefone. Onir faz parte do Movimento Negro Unificado (MNU) e esteve junto ao Quilombo da Família Silva durante essa luta de mais de 50 anos.

“A caminhada dos Silva é muito paradigmática porque, de certa forma, impôs, tanto ao movimento negro como ao movimento social de conjunto, um outro olhar no sentido de um enfrentamento consequente com todos aqueles que oprimiam eles. Por isso, o Quilombo dos Silva não é só um diferencial por ser o primeiro quilombo urbano titulado do país, é o primeiro quilombo titulado do estado, é o primeiro titulado com desapropriação, ou seja, é um marco em vários sentidos”, disse.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Hoje, o foco da luta quilombola está direcionado para a questão do reconhecimento e titulação da suas terras?

 

Onir de Araújo – Sim. Em princípio, a prioridade é essa, a questão da titulação. Mas combina com a questão da sustentabilidade também, ou seja, das demandas específicas de cada comunidade quilombola, na medida em que a maioria delas, em decorrência de anos de opressão, carecem de infraestrutura básica.

A questão é combinada, mas é óbvio que a titulação é prioridade, porque é a segurança de que o território não vai ser mais tocado.

 

IHU On-Line – Quais são as maiores dificuldades que as comunidades quilombolas vivem hoje?

 

Onir de Araújo – Existem as dificuldades estruturais. A maioria das comunidades quilombolas não é atingida por políticas públicas. Boa parte carece da infraestrutura básica, tanto as rurais como as urbanas, desde luz elétrica até a questão de implementos agrícolas, acesso a recursos e assim por diante. Mas a dificuldade maior é o descaso geral das três instâncias de estada. Geralmente, o que se faz muito é “pirotecnia”, mas o que se conseguiu até hoje, em termos de garantias, foi graças à resistência e ao esforço das próprias comunidades quilombolas junto com o movimento social negro.

 

IHU On-Line – Quais foram os caminhos que o Quilombo da Família Silva teve que percorrer para conseguir essa titulação?

 

Onir de Araújo – Em primeiro lugar, foi muita unidade na própria comunidade e resistência à pressão do entorno, do grande capital imobiliário, do racismo e para que eles fossem ludibriados. Eles já estavam há 50, 60 anos sobre a área e praticamente perderam as ações de uso capião. A caminhada dos Silva é muito paradigmática porque, de certa forma, impôs, tanto ao movimento negro como ao movimento social de conjunto, um outro olhar no sentido de um enfrentamento consequente com todos aqueles que oprimiam eles. Por isso, o Quilombo dos Silva não é só um diferencial por ser o primeiro quilombo urbano titulado do país, é o primeiro quilombo titulado do estado, é o primeiro titulado com desapropriação, ou seja, é um marco em vários sentidos, tanto no marco da resistência, da unidade, da coerência e de resistir aos assédios do grande capital imobiliário, mantendo um referencial de povo negro, quanto um exemplo de caminhada e de luta consequente até o final. O quilombo dos Silva se manteve coerente no sentido do seu protagonismo e sofre determinadas perseguições por parte do poder estatal por causa disso.

 

IHU On-Line – O que representa essa movimentação para o reconhecimento do primeiro quilombo no RS?

 

Onir de Araújo – Representa mais do que para o Rio Grande do Sul. Representa para o Brasil inteiro. Na verdade, a titulação dos Silva significa um novo olhar sobre a questão do espaço urbano. É a consolidação de um processo, é uma nova cidade que estava comprimida, e, a partir das políticas eugênicas e de expansão urbana discriminatória, julgou boa parte da população negra na periferia. O quilombo dos Silva significa este ressurgimento, uma rediscussão do espaço urbano com enfoque étnico, que começa a construir um novo tipo de democracia. Fala-se que o Brasil é um país pluriétnico e pluricultural, mas, na verdade, quando se vai colocar isto no chão, em termos de políticas públicas, a coisa não acontece. O quilombo dos Silva é um marco, também, neste sentido. Tem quilombos urbanos, por exemplo, no Rio de Janeiro, que se referenciaram no quilombo dos Silva. Mas imagine se boa parte das comunidades negras não tem a titularidade das suas terras nos espaços urbanos, a sinalização que o quilombo dos Silva dá é que é possível, se parte de um referencial de povo negro e de luta histórica. Acho que este é o principal exemplo.

 

IHU On-Line – A titulação dos Silva já saiu por completo?

 

Onir de Araújo – Saiu parcialmente, mas foram entregues três títulos referentes a uma parte da área, onde já havia sentença nos processos de desapropriação, e os supostos proprietários concordaram com o valor de indenização na ação de desapropriação. Existem três faixas, que são três processos envolvendo três ações de desapropriação contra os supostos proprietários. Mas a polêmica não é sobre a posse do território, é sobre valores e, tecnicamente falando, as ações de desapropriação em termos possessórios, não têm volta, em relação à desapropriação por interesse social. A União procura, até pela novidade do tema, apontar um valor menor porque deve ser assim mesmo, pois, é uma área que foi gravada como especial de interesse cultural, então não pode ser avaliada pelo preço de mercado. E é óbvio que os supostos proprietários querem uma sobrevalorização desses imóveis, mas é uma polêmica que se dá simplesmente na esfera dos valores.

 

IHU On-Line – Como está a titulação do Chácara das Rosas, em Canoas?

 

Onir de Araújo – Não tenho como me manifestar sobre essa situação. Não tenho informação. A única coisa que garanto é que, ao contrário do que a RBS divulgou no Jornal do Almoço, não é a primeira comunidade quilombola a ser titulada, a primeira é o quilombo dos Silva.

 

IHU On-Line – Qual o contexto dos quilombos hoje no RS?

 

Onir de Araújo – Aproximadamente, são 135 comunidades, sendo que existem no INCRA em torno de 60 procedimentos administrativos abertos. Agora, o ritmo em relação à demanda é muito precário. O que se avançou aqui no RS não foi por um compromisso maior do INCRA, é porque, aqui, tanto o movimento quilombola como o movimento social negro pautaram e se mobilizaram, exigindo que se cumprisse a legislação no que se refere à demarcação e titulação das terras. Houve uma audiência pública no dia 28 de agosto, que, de certa forma, foi importante para que nós conseguíssemos a titulação dos Silva no dia 25. Na ocasião, na presença de 600 quilombolas, a presidência do INCRA se comprometeu que titularia, entre os dias 20 e 30 de setembro, o quilombo dos Silva, a Chácara das Rosas e seriam publicados vários decretos envolvendo comunidades que inclusive são seminais aqui no RS, como Casca e Morro Alto. Entre os compromissos assumidos publicamente nesta audiência, praticamente, o único que foi cumprido à duras penas, inclusive com o INCRA tentando pressionar o Quilombo dos Silva para que se adequasse a uma agenda estranha às necessidades do movimento, foi a agenda de preceitos com a postura de ruptura em relação a compromissos assumidos de datas etc. Digo que a situação é muito precária e irá precisar que os movimentos quilombola e negro tenham muita coerência e consequência em exigir que sejam cumpridos os direitos que estão consagrados para as comunidades quilombolas.

 

IHU On-Line – Como o senhor viu a rejeição de alguns dispositivos por parte dos deputados federais, do Estatuto da Igualdade Racial?

 

Onir de Araújo – O Movimento Negro Unificado tem uma posição extremamente crítica a este Estatuto da Igualdade Racial, e, inclusive, ao texto que foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Estamos denunciando publicamente que o texto deste estatuto é extremamente pálido, ou seja, foi uma negociata feita nas costas do povo negro para atender a interesses de grandes grupos da bancada ruralista. Tanto é que, por exemplo, o capítulo quilombola está fora, a questão das cotas nas universidades também está fora, e tanto é assim que os deputados do DEM festejaram esse estatuto. Eu considero que não é mais da igualdade racial, é um estatuto que, em relação às principais demandas que o povo negro colocava, as políticas afirmativas e a questão quilombola, está vazio. A questão do fundo de reparação também foi esvaziada. Portanto, ele perdeu completamente qualquer perspectiva de essência que interessasse à população negra. O que eu vi foi boa parte dos deputados comemorando, mas não se tinha que comemorar com a aprovação deste texto. Eu, como negro, fiquei pasmo com o comportamento dos parlamentares. O Estatuto da Igualdade Racial fica com um conteúdo que não é dispositivo, é um conteúdo autorizativo. Fica como uma carta de intenções, mas que na essência não nos serve.

 

IHU On-Line – Como o senhor se vinculou a essa luta das comunidades quilombolas?


Onir de Araújo – A organização que eu faço parte, o Movimento Negro Unificado, praticamente pautou essa questão. Somos uma organização que tem 31 anos de existência, com uma trajetória de luta antiga e, de certa forma, somos os co-fundadores da Coordenação Nacional Quilombola, a CONAQ. Vários companheiros e companheiras nossos, não de agora, mas de muito tempo, têm um luta vinculada às comunidades quilombolas. Tivemos um papel relevante enquanto organização política negra para pautar esse tema na constituinte em 1988, houve uma articulação de negros e negras pela constituinte em 1986 para que se gravasse na constituição pontos que refletissem os nossos interesses, entre eles, o artigo 68 do Ato das disposições constitucionais transitórias. A minha vinculação é em função do programa político da minha organização política negra, que é o MNU, e também por um compromisso ancestral. De certa forma, todos nós, homens e mulheres negros, somos parentes de alguma forma. Se nós percebemos, temos esta herança tanto da referência em relação à luta quilombola como com referência aos outros territórios referenciais negros, como a questão da religiosidade de matriz africana.

 

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