“O Quarto de Despejo está vivo”, afirma filha de Carolina Maria de Jesus

Em 60 anos do livro “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, da escritora Carolina Maria de Jesus, é possível perceber a história da literatura afro-brasileira. O livro, um sucesso de público e de crítica, é considerado um dos mais importantes do Brasil. Nele, em formato de diário, a autora narra como garantia a própria sobrevivência e dos três filhos trabalhando como catadora de papéis e, também o cotidiano na favela do Canindé, em São Paulo.

Professora de língua portuguesa e filha da escritora, Vera Eunice de Jesus Lima acredita que pouca coisa mudou na sociedade brasileira nesses 60 anos, mas a postura da população negra mudou. “O livro ‘Quarto de Despejo’ está completando 60 anos, mas o problema no Brasil continua o mesmo, por isso é um livro atual e será assim por muito tempo. O que eu tenho visto de mudança quanto ao ‘Quarto de Despejo’ e hoje é que hoje o negro é engajado, o negro é politizado, o negro é culto, o negro sabe o que quer, o negro quer atingir seus sonhos”, analisou.

A filha de Carolina decidiu se tornar professora por influência da mãe, a partir de uma carta que a escritora deixou em seu leito de morte, vendo a paixão da filha pela língua portuguesa. “Ela tinha paixão por professoras, porque ela tinha ciência de que se ela conseguiu ser a Carolina Maria de Jesus foi por causa da primeira professora dela, primeira e única, porque ela ficou um ano e meio na escola e nunca mais estudou. Ela foi tomando gosto pela leitura e foi se acostumando. Então, com certeza ela me influenciou para ser uma professora”, lembra Vera. Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato Pernambuco: Lançado em 1960, o livro “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” completa 60 anos e até hoje é considerado um dos livros mais importantes da literatura brasileira e um dos primeiros escritos por uma mulher negra. Como você observa as mudanças que aconteceram na literatura afro-brasileira nesse período?

Vera Eunice: O livro “Quarto de Despejo” está completando 60 anos, mas o problema no Brasil continua o mesmo, por isso é um livro atual e será assim por muito tempo. O que eu tenho visto de mudança quanto ao “Quarto de Despejo” e hoje é que hoje o negro é engajado, o negro é politizado, o negro é culto, o negro sabe o que quer, o negro quer atingir seus sonhos. Inclusive eu estive no Nordeste e eu fiquei impressionada de como o negro é culto, como ele lê Carolina, como ele sabe a história da Carolina e desde o negro mais simples, como o que cata recicláveis, até o negro mais culto; e isso não só no Nordeste.

Eu tenho percebido que o negro se espelha muito na Carolina, pelo que ela passou, pela história que ela tinha, porque muitos negros têm a história da Carolina. Eu vejo várias mulheres que são mães solteiras, empregadas domésticas, com pouco estudo ou com muito estudo; eu vejo adolescentes negras querendo alcançar o sonho igual a Carolina Maria de Jesus alcançou.

Então, eu acho que a Carolina Maria de Jesus hoje é mesmo uma referência para a literatura negra e para os negros não só no Brasil, eu digo nisso negros americanos, negros de Paris, negros da Alemanha. Então, o meu objetivo hoje é colocar a Carolina Maria de Jesus na literatura, ao lado de Clarice Lispector, ao lado de Jorge Amado, para termos uma escritora negra compondo a nossa literatura brasileira.

Quais são a lembrança mais marcante da sua infância com a sua mãe na favela do Canindé, em São Paulo? Já que muitas dessas histórias estão descritas no livro e contam a história da vida de Carolina e também da sua e dos seus irmãos.

As lembranças que eu tenho da minha mãe na favela do Canindé são logicamente de uma mulher que vivia atrás de comida. Isso eu tenho claramente na minha memória a preocupação dela em alimentar os filhos, mas também tem partes muito alegres que eu lembro da Carolina: eu lembro da Carolina cantando com a gente, eu lembro da Carolina lendo para a gente, eu lembro da Carolina contando os causos. Ela tinha o livro “As Mil e Uma Noites” e lia todo dia uma história para a gente, então era uma mulher que queria passar a cultura para os filhos. A gente tocava violão, ela tocava e a gente cantava junto.

Mas também lembro de muitas partes, uma que me chocou muito no “Quarto de Despejo” é que a gente vivia pedindo comida, principalmente o meu irmão mais velho, ele pedia comida o tempo todo, como dizia a minha mãe – ela falava muito bem, então ela falava “esse famélico”. Eu lembro que ela chegou em casa com um pacote embrulhado num jornal e, quando ela chegava em casa, eu lembro que a gente já a cercava, a gente não tinha móveis – a gente tinha caixotes e caixas – e eu lembro que ela colocou aquele pacote na mesa e nós chegamos na mesa e quando ela abriu eram ratos mortos. Então, ela se desesperou, porque tinha dias que ela conseguia trazer comida, mas tinha dias que chovia, que ela não catava muito papel, então o dinheiro vinha muito curto. Ela sofria muito com isso, ela chorava até.

Lembrança também com a minha mãe que eu tenho é aquela água, no Canindé quando chove, transborda por causa do rio. Então, minha mãe nos chamava – porque o barraco estava inundado – e a gente ia dormir em um albergue, então a gente ia para um albergue lá no centro de São Paulo, mas o albergue eu não recomendo para ninguém – não sei se melhorou hoje.

A gente dormia naqueles lençóis mal cheirosos de urina, aquelas mulheres nuas correndo para tomar banho. Era um horror! Eu não suportava aquilo e nem ela! Então ela nos chamava – ela era muito alta, então ela se abaixava – e perguntava “vocês querem ficar aqui ou querem ir para a rua?”. A gente falava “então, vamos para a rua” e aí a gente ia para a rua. Mas a rua também ninguém merece, a rua também são noites longas, noites frias, terrível a rua também. Então, voltávamos para a favela.

Ela jamais deixaria meus irmãos faltarem a escola, então o que ela fazia era os colocar pela janela quando o barco vinha buscar; quando o barco não vinha, ela os colocava nas costas e ia nadando; pegava uma roupinha e trocava lá quando chegava, mas ela não os deixava faltar a escola.Ela valorizava muito o estudo, ela valorizava muito o ensino e, conversando com Conceição Evaristo que faz parte do conselho dos novos lançamentos da Carolina que virão pela Companhia das Letras, achei interessante que ela pegou um trecho do diário da mãe dela que hoje tem 98 anos e ela começa a ler para a gente ali no grupo. Nossa! Fiquei muito emocionada, achei tão parecido, tão semelhante. E eu acho a história da Conceição muito parecida com a da Carolina, com a minha. Ela sempre diz que hoje ela é uma escritora, porque ela se inspira em Carolina Maria de Jesus.

O livro deixa muito latente a desigualdade social no Brasil e faz um recorte racial dentro dessa desigualdade. Como professora, de que forma você observa a importância de trabalhar o tema da consciência negra?

Como professora sempre procuro trabalhar em escolas de periferia, de comunidade, porque eu me sinto muito parecida com as crianças que frequentam essas escolas e a desigualdade social ainda está muito grande aqui no Brasil.

Eu tenho um aluninho e ele chega pela manhã na escola, ele tem 5 anos, ele chega e ele chuta a porta, a carteira, ele chuta o professor, ele chuta os coleguinhas; a quem encostar nele. Ele vem super agressivo e vem agressivo comigo também. Ele fica gritando “estou com fome, estou com fome, estou com fome” e a gente está ciente de que esta criança não jantou. Ela ficou até 13h na escola, almoçou na escola e depois a gente percebe que ela foi para casa e só come na manhã seguinte.

Então, eu passo o lanche para frente; eu falo “olha lá se as meninas já estão preparando o lanche”. É proibido repetição, mas no caso dele a gente dá um pãozinho a mais ou um pouco mais de leite, porque não tem condições, aí ele volta para a sala de aula outra criança. Uma criança de 5 anos, mas ele volta tranquilo, fazendo as atividades na medida do possível, então veja como o “Quarto de Despejo” está aí, vivo.

Com essa pandemia, nós que trabalhamos em escolas da periferia e sabemos muito bem a realidade dessas famílias, resolvemos todos os professores e colaboradores fazermos uma vaquinha e fizemos uma pesquisa com as famílias, fizemos uma listagem e montamos cestas básicas. Colocamos frutas e verduras também para atender bem as famílias.

Eu avisei que às 9h, as famílias podiam ir buscar as cestas; quando deu 6h da manhã já tinha uma turma sentada descalça, com chinelo de dedo, lenço na cabeça, muitos sem dentes. Avisei que ia demorar, era só às 9h, estava frio, e eles falavam “não se preocupe, não; a gente espera, não tem problema”. Mas ali eu vi a minha mãe, a minha mãe era assim: se sabia que ia ter comida, que iam dar, ela ai cedo para poder arrecadar.

A minha mãe, como dizem os pesquisadores, você não pode falar que ela era semianalfabeta. Eu digo semianalfabeta, porque ela só estudou um ano e meio na escola, mas na realidade é uma pessoa que viveu a literatura a vida inteira, nós fomos criados no meio das letras, no meio dos livros, no meio da leitura, no meio da arte. Então, quando eu entrei na escola, eu já sabia ler, porque eu vivia um letramento com a minha mãe. Então, isso que eu quero passar para os negros, a importância da leitura. Eu acho que o negro para se sobressair, para se empoderar, ele tem que ler.

De que forma a sua mãe e a paixão dela pela literatura te influenciaram a seguir a carreira de professora?

A minha mãe era uma pessoa que escrevia, por que, sinceramente, como diz Audálio Dantas, “não houve e nunca mais haverá uma escritora como Carolina Maria de Jesus no Brasil e no mundo”. E eu sou obrigada a concordar com ele, porque a minha mãe escrevia errado – ela escrevia açúcar com dois “s”, farmácia com “ph”, “nós foi”, “eles vai” e é assim. Apesar da literatura dela ter um lirismo – encantador o lirismo dela – tinha muitos erros.

Inclusive, a Companhia das Letras vai lançar uns inéditos dela e eu fiz um pedido, e eles acharam legal e o conselho concordou; que conserve essa escrita da Carolina – açúcar com dois “s”, farmácia com “ph” – para mostrar como era autêntica a escrita dela. Então, está se vendo um jeito de escrever do jeito que ela escrevia, mas explicar para a criança que vai ler – e os adolescentes – que o açúcar é com “ç”, mas a gente está estudando ainda a maneira como vamos fazer, mas ao mesmo tempo preservar a escrita “errada” dela.

Minha mãe às vezes estava andando e de repente ela falava: “Veio uma ideia na minha cabeça” e ela sempre tinha um lápis no bolso. Ela só gostava de roupa de bolso, porque ela sempre tinha um lápis ali e pegava o papel que estivesse do lado, ali ela escrevia – as ideias vinham – e ela escrevia a noite inteira. Então, ouvia rádio, adorava rádio – ela não perdia as telenovelas e os jornais da manhã, ela nunca perdia. Então, fomos criados assim.

Como eu me sobressaia muito em Língua Portuguesa, ela queria aprender cada vez mais, ela não queria mais escrever errado. Então, ela queria que eu ensinasse para ela concordâncias verbais, concordâncias nominais, encontros vocálicos, letras maiúsculas, sinais gráficos. Então, ao mesmo tempo que eu a ensinava, ela queria que eu corrigisse os manuscritos – inclusive nos manuscritos têm a minha letra. Aí eu sempre digo que a minha mãe, a Carolina, foi a minha primeira aluna, então ali eu já fui tomando gosto para ensinar e ir ensinando.

Mas o que culminou mesmo para eu ser professora foi quando a minha mãe faleceu, um dia após a morte dela, porque ela deixou uma carta com vários pedidos e alguns papéis também, e num desses pedidos ela colocou que gostaria muito que eu fosse professora, se eu pudesse um dia ser professora. Ela tinha paixão por professoras, porque ela tinha ciência de que se ela conseguiu ser a Carolina Maria de Jesus foi por causa da primeira professora dela, primeira e única, porque ela ficou um ano e meio na escola e nunca mais estudou. Ela foi tomando gosto pela leitura e foi se acostumando. Então, com certeza ela me influenciou a ser professora.

Fonte: Por Lucila Bezerra, do Brasil de Fato 

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