O que DJ Ivis e Liziane Gutierrez têm em comum

O Brasil não é a comoção ou os pedidos de justiça. É o homem que bate, a classe média alta que entende os policiais como seus capatazes

Eu fico um pouco impressionada com quem consegue falar e opinar tão rápido, em meio a tanta maldade, com tantas notícias e imagens aterrorizantes. Já eu, permaneço uns dias com o estômago embrulhado e, dependendo do acontecimento, agradeço não ser a minha semana de “opinar”. Opinar dá muito trabalho e embrulha o estômago. Mas não foi desta vez, em meio a tantas imagens e notícias aterrorizantes, cá estou eu opinando.

Notícia que preciso opinar nº1: domingo, depois de ser flagrada com outras cerca de 500 pessoas em uma festa clandestina em São Paulo, Liziane Gutierrez apareceu em um vídeo gritando e xingando policiais. A frase mais emblemática do vídeo é “vão bater na favela!”

Notícia que preciso opinar nº2: domingo, Pamella Holanda divulgou inúmeros vídeos em que aparece sendo espancada pelo ex-marido, DJ Ivis.

Ambas as notícias me aterrorizaram de formas diversas: o teor, o tempo, as palavras, os gestos, o medo, os questionamentos, o ódio, o apoio ao agressor. Consegui identificar vários sentimentos em mim, nas mulheres e também nas outras milhares pessoas que comentaram as notícias nas redes sociais.

Mas o sentimento coletivo que mais me impressionou foi o senso de justiça. Era o que todos queriam, era o que todos pediam. Todo mundo queria saber onde estava a polícia, o porquê de DJ Ivis e Liziane não estarem presos ainda.

E é sobre isso que eu quero opinar: segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com cerca de 773.151 presos. É o triplo de 20 anos atrás, quando os números passaram a ser computados. A taxa de encarceramento a cada 100 mil habitantes passou de 137, em 2000, para 367,91 até junho do ano passado. Do total, 312,1 mil presos estão acima da capacidade carcerária do país.

Olhando assim em números absolutos, parece até que somos bons em prender, em fazer justiça custe o que custar, doa a quem doer. Então realmente faz sentido a indignação coletiva, o chamamento da polícia para resolver nossa vida.

Mas vamos olhar os números com uma lupa:

Dos presos, 39,4% estão em penitenciárias e delegacias por crimes relacionados à lei de drogas: tráfico, recepção, associação. Outros 36,7% do total estão presos por crimes contra o patrimônio: roubo, furto, extorsão, apropriação indébita, estelionato. Só 11% são presos por crimes contra a pessoa: homicídio, ameaça, violência doméstica. O menor índice são de presos por crimes contra a administração pública: 0,1% do total. Afinal, quem a polícia está preocupada em prender?

Podia colocar mais algumas lupas: racial, de classe ou de gênero nesses presos e presas, mas isso me embrulha o estômago demais. Sugiro que leiam “Presos que menstruam”, de Nana Queiroz,e “Prisões: Espelhos de nós” da Juliana Borges, duas mulheres incríveis e com o estômago que alguém precisa ter.

Por fim, minha opinião (e também certeza) é de que o Brasil não é a comoção ou os pedidos de justiça. O Brasil é o homem que bate, a classe média alta que xinga a polícia porque entende os policiais como mais um dos seus empregados, dos seus capatazes para afastar os pobres e favelados.

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