Estamos no Julho das Pretas, mês em que se celebra o dia da mulher negra latino americana e caribenha, com data culminante de comemoração em 25 de julho. Neste dia, também se celebra a memória de Tereza de Benguela, rainha quilombola que liderou um quilombo inteiro de negros e índios e traçou estratégias de combate e organização política e administrativa. A data comemorativa foi implementada pela Lei n° 12.987/2014.
Tereza de Benguela é um nome esquecido da nossa história nacional, assim como diversas trajetórias de mulheres negras que foram constantemente invisibilizadas. Sabemos que uma das estratégias mais eficientes do racismo é o apagamento dessas trajetórias e o silenciamento da voz de mulheres negras.
Neste contexto de apagamento, temos inúmeras heroínas negras de ontem e de hoje que trazem um legado ancestral de luta, articulação política, mobilização social, contribuições para o avanço na ciência, dentre outras frentes. O fato é que mulheres negras transformam realidades todos os dias e nem todos tomam conhecimento disto, de modo que tais mulheres não devem ser lembradas apenas no julho das pretas. Essa é uma questão que atinge o cerne dos movimentos, as organizações feministas e as ocupações dos espaços de poder e decisão.
Um importante expoente do feminismo negro brasileiro, Lélia Gonzalez, denunciava que havia no interior do movimento feminista a exclusão e silenciamento das negras e das indígenas dos debates. A célebre autora criou o termo amefricanidade, como uma categoria de identidade comum às mulheres latino-americanas e descendentes de africanos.
A Antropóloga ressaltava que muito embora tenha sido inegável a contribuição de feminismo para a expansão dos estudos de sexualidade, através da promoção dos estudos de gênero, não houve o mesmo tipo de empenho e abertura para a discussão de acerca de outro tipo de discriminação tão grave como a sofrida pela mulher: a discriminação que envolve o caráter racial.
Nesse contexto, durante muito tempo, o feminismo hegemônico teria sofrido de uma espécie de miopia em relação à opressão das mulheres negras e das mulheres lésbicas em razão da visão de mundo eurocêntrica e neocolonialista, muito embora tanto o racismo e o feminismo compartilhassem como ponto convergente a ideologia de dominação justificada pelas diferenças biológicas.
Tal fenômeno relacionado a ausência inicial de discussões raciais no âmbito do feminismo hegemônico seria denominado pela autora como o racismo por omissão.
Gonzalez ainda teceu críticas contundentes à falha habitual do feminismo latino-americano em omitir dos seus debates um componente importante da realidade que seria de grande importância: o caráter multirracial e pluricultural das sociedades existentes na América.
A Autora, ao caracterizar distintas modalidades de participação em movimentos sociais, observou uma divisão em três vertentes, diferenciadas por tipo de expressão, no interior destes movimentos: popular, político-partidária e feminista. E é justamente na vertente de movimentos populares que é possível encontrar maior participação das chamadas amefricanas e ameríndias, as quais preocupadas com o problema da sobrevivência familiar, buscaram organizar-se coletivamente para a mudança da realidade opressiva; por outro lado, sua presença principalmente no mercado informal de trabalho as remeteu a diversos tipos reivindicações. Também por políticas públicas Dada sua posição social precarizada, que se articula com sua discriminação racial e sexual, são estas mulheres que estão na base da pirâmide social que sofriam mais brutalmente os efeitos das crises. Esta realidade permanece ainda no contexto deste século.
Gonzales propõe que o antirracismo deve ser visto como algo que não deveria ser alheio à prática dos Movimentos de Mulheres, eis que se trata de uma atitude ligada aos melhores princípios feministas.
Atualmente, não se pode negar que existem relevantes tensionamentos entre as práticas e discursos intra feministas dado o caráter diverso das lutas que envolvem as pautas relacionadas ao feminismo. Podemos ilustrar tal tensão com o que ocorre cotidianamente entre mulheres negras e mulheres brancas quando debatem em algum ambiente comum questões relacionadas ao feminismo.
Hoje, contudo, é premente a necessidade de desconstrução do feminismo hegemônico e o estabelecimento de diálogos e alianças entre mulheres negras, indígenas e brancas.
O histórico silenciamento e invisibilidade das questões específicas que atingiam mulheres negras é o grande ponto nevrálgico dos conflitos e desconfortos ainda existentes. Contudo, a ausência de aliança entre as mulheres que vivenciam contextos diversos só ocasiona prejuízos.
Muito embora saibamos que não se pode falar em uma causa universal do feminismo, a ruptura total traz maiores prejuízos do que ganhos. Nesse contexto, como é possível estabelecer a ponte diante do histórico de silenciamento e opressão protagonizado por mulheres brancas feministas?
A pauta antirracista não deve estar restrita aos discursos e práticas do feminismo negro. O feminismo deve se comprometer com a pauta antirracista. Portanto, é preciso debater os privilégios de gênero, raça e classe dentro na formação feminista nos espaços de resistências e de lutas pelos direitos das mulheres e outras minorias sociais ao acesso a espaços de poder.
A ocupação, ou lacuna, de mulheres negras nos espaços de poder e decisão possui ligação direta com o apagamento das trajetórias exitosas dessas mulheres, a despeito de toda estrutura racista que conspira contra a valorização e destaque para tais figuras. Mulheres negras em espaços de poder e decisão podem ofertar a sua voz em favor da pauta antirracista e podem exercer também a boa representatividade, ou seja, aquela em que se transforme e eleva a realidade da população negra. Este deve ser um compromisso de uma sociedade que possui dívidas históricas com a população negra e deve se aliar aos ideais antirracistas. Em mais um julho das pretas, devemos todas celebrar nossas existências, resistências e a possibilidade de exercer a nossa voz, com um olhar para um futuro com menos desigualdade e mais oportunidades.
Viva Tereza de Benguela! Viva Lélia Gonzales! Viva muitas outras que vieram antes de nós.
Charlene Borges é defensora pública federal e mestranda em estudos de gênero e feminismos.