‘Traz um café?’: microagressões racistas nos fazem duvidar de nosso mérito

Meu primeiro emprego foi num estúdio fotográfico. Eu estudava jornalismo e tinha acabado de entrar na faculdade. Havia sido contratada como recepcionista e minha função além atender ao público era organizar os arquivos de imagens, e auxiliar a fotógrafa, dona do estúdio, nas suas produções.

Logo na primeira semana, um grupo de pagode, muito famoso na época, alugou o estúdio para fazer as fotos da capa do próximo disco. Enquanto se preparavam pro trabalho, um dos fotógrafos se virou para mim e me pediu para fazer um cafezinho.

O meu instinto foi rápido como o de um gato. Resposta certeira e na ponta da língua sem nem ao menos levantar meus olhos que estavam pousados na tela do computador: sou a recepcionista, a cozinha fica na próxima porta à direita e o café está no armário sob a pia.

Em milésimos de segundos eu passei de uma recepcionista educada para uma serviçal insolente. Meu colega de trabalho Samuel, vendo a cara de raiva que se formava na face do fotógrafo, logo tratou de ser gentil e dizer que faria o café.

O que aquele fotógrafo fez foi olhar para mim e deduzir que uma jovem negra trabalhando dentro de um estúdio fotográfico num bairro de classe alta de São Paulo só poderia estar ali para servir o cafezinho e limpar toda a sujeira que ele fizesse. Para pessoas como ele, os corpos negros estão circulando nos ambientes apenas para servi-lo e nada mais.

Essa história é só mais uma dentro do meu livro de relatos de microagressões racistas que venho colecionando ao longo da vida. São situações violentas demais para causarem um estrago em quem as sofre, mas pequenas demais para conseguirmos demonstrar ao mundo a sua intensidade, ainda mais quando estamos num país onde as principais manifestações de racismo não são explícitas, mas sim cúmplices e silenciosas.

Tenho realizado algumas entrevistas com mulheres negras sobre a presença delas no mercado corporativo para uma série de podcasts que lançaremos na Meteora, agência que fundei há quatro anos junto com a publicitária Renata Hilario.

A cada conversa vai se revelando um universo de cumplicidade entre mulheres que são invisíveis demais para se tornarem gerentes, analistas ou CEOs e visíveis demais para serem as mulheres que serão barradas na entrada da empresa caso esqueçam o crachá, as mulheres que serão escaladas a fazer o café da reunião ou para executarem tarefas de organização dentro do escritório que não fazem parte da descrição de seus cargos.

Essas situações no ambiente de trabalho fazem com que muitas de nós acreditem que para progredir será necessário dar o dobro de si. E nós seguimos tentando ser perfeitas e raramente recebemos o reconhecimento que outra pessoa não negra recebe mesmo sendo medíocre.

A maneira violenta como somos tratadas nos faz acreditar que tudo o que se passou conosco foi sorte quando na verdade a sorte não nos cabe. Sorte não tem nada a ver com nossas conquistas, trabalhamos intensas horas para alcançar nossos momentos de glória profissional.

A atriz americana Viola Davis disse certa vez, enquanto recebia um prêmio, que a única coisa que separa mulheres negras de qualquer outra pessoa são as oportunidades. As oportunidades não são criadas para mulheres como nós.

Eu poderia ter sido gentil e feito aquele café? Não. Eu não poderia fazer aquele café.

Se eu tivesse feito aquele café, eu não estaria sendo gentil, estaria sendo subserviente e permitindo que mais uma vez a imagem de uma mulher como eu fosse relegada ao quadrado do café e da limpeza dentro de um escritório.

Nós mulheres negras queremos ser bem-sucedidas em nossas carreiras e nunca nos faltou ambição para fazer isso. Então criem as oportunidades, pois nós estamos extremamente bem preparadas para o sucesso individual e coletivo.

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