O que fala esse corpo de mulher? Sexismo, (in)correção política e Gisele Hope

Quando alguns personagens participam de determinadas discussões, inevitavelmente são vítimas de ataques que se repetem: sofrem de transtornos emocionais (recalque, inveja, ressentimento, ódio etc.), não possuem senso de humor, são desmedidos, são paranoicos pois veem o que não existe, são politicamente corretos. No debate acerca de uma campanha publicitária da marca de lingerie Hope, estrelada por Gisele Bündchen, contra as feministas, como previsível, foram desferidos todos esses ataques. É uma medíocre tática de desqualificação contra quem realiza uma crítica, mas que goza de um amplo apelo.

por Fabiano Camilo

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Começo pela contracrítica à (suposta) correção política dos enunciados feministas, que aparenta ser fundamentada e relevante. Afirmar que alguém é politicamente correto consiste, em geral, não apenas em uma reprovação, mas também em uma ofensa. Por conseguinte, quem adota uma atitude socialmente rotulada como politicamente correta, como a defesa de uma minoria, tende a não querer ser julgado como um indivíduo politicamente correto. Afinal, correção política significa sobretudo estupidez, caretice e patrulhamento. Ninguém parece querer ser politicamente correto. Em contrapartida, a incorreção política costuma ser valorizada, o indivíduo politicamente incorreto é reputado como ousado, iconoclasta, transgressivo, cool.

O primeiro problema é que aparentamos não saber muito bem o que seja correção e incorreção políticas. ‘Politicamente correto’, ‘politicamente incorreto’ se tornaram significantes disponíveis, que se aplicam indiscriminadamente a indivíduos os mais diferentes, aos mais variados discursos e práticas. A inversão à qual me que referi é um indício dessa confusão semântica. A denúncia contra discursos e práticas que legitimam e reproduzem situações de discriminação, exclusão e opressão, ao invés de ser considerada crítica e potencialmente contestadora, é recepcionada, contraditoriamente, como retrógrada e autoritária. Contudo, embora pense que a incorreção política está a serviço da conservação do status quo, não estou advogando em defesa da correção política.

Duas dimensões estão compreendidas na correção política.

Primeira. Uma preocupação – surgida entre a esquerda estadunidense, nas décadas de 1980 e 1990, no decurso das guerras culturais e relacionada às políticas identitárias – com o vocabulário e a enunciação, com o conteúdo daquilo que é enunciado e com a maneira pela qual é enunciado. Essa preocupação – adjetivada pela direita estadunidense, em tom sarcástico e pejorativo, de politicamente correta – se prolonga em uma preocupação com a conduta, com os modos de tratamento dispensados a indivíduos pertencentes a grupos tradicionalmente discriminados, excluídos e oprimidos, como pobres e miseráveis, mulheres, negros, índios, homossexuais, bissexuais e transgêneros, fiéis de certas confissões, estrangeiros etc. Essa primeira dimensão é a própria definição, que se obscureceu, de correção política – ainda que, originalmente, não tivesse esse nome.

Em um artigo no Amálgama, “Ser ou não ser politicamente incorreto, eis a não-questão”, meu amigo Daniel Lopes ponderou que, com frequência, a incorreção política é errada, mas que, muitas vezes, é também indispensável. A crítica e a discordância ao senso comum e ao dogmatismo intelectual, posturas que ele qualifica como politicamente incorretas, são, muito simplesmente, apenas crítica e discordância ao senso comum e ao dogmatismo intelectual. Não é preciso lhes conferir o estatuto de incorreção política para se ressaltar sua importância, ou melhor, sua imprescindibilidade. A crítica ao que Daniel denomina o cânone relativista, constituído, de acordo com ele, por autores como Herbert Marcuse e Michel Foucault, não é uma atitude politicamente incorreta. A predominância de alguns pensadores e de determinados conceitos e ideias, no panorama intelectual de uma sociedade em certa época, é um fenômeno recorrente e mais bem compreendido não pelo termo correção política, mas por um termo antigo, doxa. Refutar a recepção acrítica e a mera repetição de conceitos e ideias não é confrontar o pensamento politicamente correto, mas a doxa. Por fim, um dos exemplos oferecidos por Daniel me parece em franco conflito com seu entendimento da correção e da incorreção políticas, o que ressalta a fluidez e a vaguidade de ambas as expressões. Nos seus próprios termos, soa incongruente que ele caracterize (positivamente) Nelson Mandela como politicamente correto. Na África do Sul do regime do apartheid, Mandela foi um crítico da ideologia e da política de Estado racistas, ou seja, um crítico do senso comum. Sua voz enunciava o fora do comum, o inesperado, o inaceitável. Mandela, consoante o significado que Daniel atribui ao termo, era politicamente incorreto.

A primeira dimensão da correção política pode ser adequadamente definida, de forma simples, como civilidade, polidez. Não é por acaso que comediantes como Danilo Gentili e Rafael Bastos são comumente escarnecidos como crianças mal-educadas, moleques sem-vergonha. O que hoje é ensinado como correção política eu aprendi, na infância, como o nome de boa educação, boas maneiras. Aprendi, por exemplo, que era errado e por que era errado chamar de crioulo, macaco uma criança ou um adulto negro. (Lamentavelmente, naquela época não se ensinava e hoje poucos pais e professores ensinam que não se deve chamar de mulherzinha, mariquinha, bichinha, veadinho um menino efeminado ou que tenha interesse pelo universo feminino.) Em entrevista a Marília Gabriela, no programa De Frente com Gabi, Danilo Gentili – atenção: é somente uma piada! – devido talvez a sua óbvia incapacidade intelectual para argumentar em defesa do seu estilo de ‘humor’, utilizou uma frase de efeito, pretensamente autoevidente: “Toda piada é preconceituosa”. Discordo da generalidade absoluta da assertiva, refutável, mas considero que preconceituosa, e não politicamente incorreta, é uma boa qualificação para o conteúdo de sua ‘piada’ sobre a recusa de parcela dos moradores de Higienópolis, onde residem muitos judeus e descendentes de judeus, à instalação de uma estação do metrô no bairro: “Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz”. Eu complementaria: antissemita, desprovida de empatia, insensível, estúpida, grosseira, vulgar, horrível. Na medida em que não são vagas como a palavra politicamente incorreto, todas essas adjetivações apresentam também a vantagem de não serem eufemísticas e anódinas.

Em maio de 2001, o ícone máximo da incorreção política brasileira, Diogo Mainardi, escreveu uma crônica, “Meu pequeno búlgaro”, dedica ao filho, portador de paralisia cerebral. O texto é pungente, mas também constrangedor:

[…] a paralisia cerebral é pública. No sentido de que é impossível escondê-la. Na maioria das vezes, acarreta algum tipo de deficiência física, fazendo com que a criança seja marginalizada, estigmatizada. Eu sempre pertenci a maiorias. Pela primeira vez, faço parte de uma minoria. É uma mudança e tanto. Como membro da maioria, eu podia me vangloriar de meu suposto individualismo. Agora a brincadeira acabou. […]

A paralisia cerebral de meu filho também me fez compreender o peso das palavras. Eu achava que as palavras eram inofensivas, que não precisavam de explicações, de intermediações. Para mim, o politicamente correto era puro folclore americano. Já não penso assim. Paralisia cerebral é um termo que dá medo. É associado, por exemplo, ao retardamento mental. Eu não teria problemas se meu filho fosse retardado mental. Minha opinião sobre a inteligência humana é tão baixa que não vejo muita diferença entre uma pessoa e outra. Só que meu filho não é retardado. E acho que não iria gostar de ser tratado como tal.

É impressionante que um homem adulto – um escritor! – tenha de ter sofrido uma experiência terrível como um diagnóstico de paralisia cerebral do filho para finalmente entender e aceitar as obviedades de que a língua não é transparente, as palavras não são inofensivas e chamar de retardado mental um portador de paralisia cerebral é uma ofensa, um ato de violência verbal. O relato de Mainardi evidencia que os que se autodeclaram, com orgulho, politicamente incorretos são indivíduos que adotam a ignorância, a insensibilidade e a prepotência como profissão de fé.

Conclusão preliminar. A preocupação com o vocabulário e a enunciação e com a conduta e os modos de tratamento é indispensável, mas não é necessário que seja denominada correção política. Civilidade, polidez, duas palavras antigas, são mais rigorosas e, portanto, apropriadas.

Segunda. A segunda dimensão da correção política, ideológica, é muito mais problemática. A mera preocupação com o vocabulário e a enunciação e com a conduta e os modos de tratamento não é suficiente para promover a transformação social. O problema é que a correção política, ou pelo menos aquilo que há muito tempo se designa por esse nome, não consegue transpor os limites dessa preocupação. Tudo se passa como se, ao se utilizar essa palavra ao invés daquela, ao se agir de tal maneira ao invés daquela, o mundo fabulosamente se tornasse um lugar melhor. Como afirma um slogan político politicamente correto hoje em voga: “Quando você muda, o mundo muda com você”. Tanto quanto a incorreção, a correção política também está a serviço da manutenção do status quo, porquanto não promove a modificação das estruturas. A dispensa de um tratamento respeitoso a, por exemplo, uma mulher negra e pobre é inegociável. Não obstante, o tratamento pode estar baseado não no reconhecimento da alteridade, mas em uma atitude condescendente. Ademais, é possível, como nós ocidentais comprovamos generosamente nos últimos séculos, discriminar, excluir e oprimir o outro com civilidade. O tratamento polido, conquanto fundado em uma postura de reconhecimento da alteridade, não resolve os problemas do sexismo, da pobreza e do racismo. Pela ênfase exclusiva nos resultados visíveis e não nos processos, a correção política promove o ocultamento das causas dos problemas, contribuindo para a reprodução das estruturas discriminatórias, excludentes e opressoras.

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É pungente testemunhar o empenho manifestado por tantas pessoas esclarecidas, politizadas e solidárias em prol dos interesses do capital. Pobre grande empresa, pobre importante agência de publicidade, pobre über model, todas vítimas da terrível opressão de um Estado totalitário! Saudosos tempos em que a liberdade de criação artística – publicidade é arte, não olvidemos – não era censurada e, por exemplo, crianças e adolescentes apareciam em anúncios de cigarro, às vezes fumando.

Às acusações de serem politicamente corretas e intolerantes e de não terem senso de humor, feitas contra as feministas que criticavam os comerciais da Hope, se acrescentou, com a entrada de um novo interlocutor na discussão, a acusação de serem autoritárias. A Secretaria de Políticas para as Mulheres – SPM, após analisar oito reclamações recebidas contra a campanha, declarou que enviaria uma representação ao Conselho de Autorregulamentação Publicitária – CONAR, solicitando a suspensão da exibição dos anúncios. Imediatamente os valorosos e valentes defensores da liberdade de expressão se mobilizaram em repúdio à censura que o governo tencionava promover. ‘Censura’ é uma palavra que também se converteu em um significante disponível. Atualmente, uma crítica bem argumentada e pertinente pode ser facilmente rechaçada com a alegação de que se trata de uma tentativa de censura, de um atentado à liberdade de expressão, conforme demonstraram à exaustão os ‘humoristas’ da estirpe de Danilo Gentili, Marcelo Tas e Rafael Bastos. Assim, o emprego da palavra censura termina funcionando como uma tática de desautorização do interlocutor e de interdição do debate.

Há considerações relevantes que devem ser feitas. A SPM agiu no estrito âmbito de suas atribuições. A ouvidoria do órgão, porque julgou procedentes as reclamações recebidas, decidiu acionar o CONAR, entidade competente para decidir pela manutenção ou pela proibição da veiculação dos anúncios. A SPM não tem competência para censurar comerciais de televisão. A indignação contra a SPM foi imensa, mas nenhum repúdio parece ter sido registrado contra o CONAR, que após receber quinze reclamações contra os anúncios instaurou um processo ético, no dia 29 de setembro, antes de receber qualquer representação enviada pelo órgão do governo, que protocolou o ofício no mesmo dia. Portanto, a abertura do processo ético independeu da atuação da SPM. O Conselho de Autorregulamentação Publicitária não é um órgão do Poder Executivo, mas uma associação sem fins lucrativos, uma organização não-governamental que, incumbida de garantir que a atividade publicitária obedeça às normas do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, aprovado no III Congresso Brasileiro de Propaganda, em 1978, “recebe denúncias de consumidores, autoridades, associados ou formuladas pelos integrantes da própria diretoria”, as quais “são julgadas pelo Conselho de Ética, com total e plena garantia de direito de defesa aos responsáveis pelo anúncio”. Os próprios profissionais e as próprias empresas da área publicitária instituíram, há trinta e três anos, um conjunto de normas para regulamentar eticamente sua atividade profissional, as quais, se não cumpridas, ensejam a suspensão da exibição de um comercial. Em resumo: se a SPM é autoritária, o CONAR também o é.

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Selecionei um pequeno apanhado de reações às críticas feministas aos anúncios e à atuação da SPM.

Rodolfo Viana reclamou, logo no título, que as “feministas são chatas pra caralho” e sentenciou que, ao afirmarem que “a campanha […] incita o estereótipo de que mulheres gastam demais e são péssimas motoristas”, os “reacionários” estão procurando pelo em ovo. Esse argumento se repete em vários textos e se pode replicar que tentar encontrar e conseguir encontrar pelo em ovo não são privilégios das feministas, mas de todas as pessoas que se esforçam para pensar. O desafio do pensamento consiste justamente em tentar encontrar e compreender aquilo que se encontra deslocado, que não está no lugar onde supostamente deveria estar, consiste em imaginar possibilidades, construir espaços onde se possa realizar deslocamentos.

Nirlando Beirão, “Querem cobrir a lingerie da Gisele. Você concorda?”, Ruth de Aquino, “A lingerie de Gisele Bündchen”, e Ricardo Setti, “Gisele Bündchen em dose tripla: este post é só para chatear a chatíssima ministra Iriny”, insistiram que os comerciais são divertidos, que não passam de uma brincadeira e que as feministas e o governo não têm senso de humor. Ruth acrescentou: “Não me senti ofendida”. Uma amiga feminista com quem conversei acerca do texto observou que, embora ela também não tivesse se sentido ofendida, não se eximiu de criticar. Sentir-se ofendido é pré-requisito para se realizar uma crítica? Com efeito, um anúncio publicitário é somente um anúncio publicitário, bem como uma piada, somente uma piada. Não resta dúvida. Não obstante, não há objeto que não possa ser pensado e todo objeto é bom para ser pensado. O que podem existir são interpretações truísticas ou equivocadas. Publicidade e humor não são temas menores, desimportantes. Por conseguinte, o que importa não é aquilo que o objeto é, mas seus significados, suas funções, seus efeitos. A consequência da desvalorização do objeto das críticas foi a acusação de que as feministas e o governo não se preocupam com os problemas sérios que afligem as mulheres brasileiras. Augusto Nunes, “Com tantas meninas estupradas por aí, a ministra Iriny decidiu que o problema da mulher é Gisele Bündchen. Foto explica”, condenou a SPM pela inércia em dois casos de adolescentes encarceradas em companhia de homens adultos e que foram estupradas por vários dias. Ambos os crimes ocorreram em Belém, o último há cerca de um mês. Supondo que estejam abrangidos pela esfera de competências do Poder Executivo federal e, especificamente, da SPM, a omissão é, sem dúvida, gravíssima. Do contrário, caso a investigação e o julgamento dos crimes sejam de competência exclusiva dos três poderes do estado de Belém, não há motivo para se reprovar a SPM. Todavia, partindo da suposição de que os casos também fossem de atribuição do Executivo federal, a inação não é razão para se afirmar que, ao tomar providências em relação à campanha, a SPM estaria conferindo atenção a um assunto irrelevante e relegando os verdadeiros problemas. Nessa hipótese, o correto seria tratar tanto dos crimes ocorridos em Belém, como da campanha da Hope. Tal hierarquização dos tópicos da agenda feminina obedece à oposição que se estabelece entre representações e práticas. A cultura e o imaginário são percebidos como dimensões menos importantes do mundo social. As imagens sexistas de um comercial de televisão, que circulam alcançando milhões de espectadores, são elos em uma cadeia de representações sexistas, as quais, continuamente comunicadas a cada um de nós desde a infância, enunciam a verdade relativa à natureza feminina, ao papel e ao espaço da mulher, conformando nossos imaginários individuais. Não é possível compreender as violências de que são vítimas as mulheres dissociando-as do imaginário sexista, que dispõe nossa sensibilidade, nosso valores, nossas ideias. Para se enfrentar eficazmente toda violência contra as mulheres, não é suficiente agir apenas sobre as práticas, que continuarão sendo reproduzidas enquanto no imaginário permanecerem circulando representações que, como nos comerciais da Hope, reduzem a mulher a um corpo submisso posto à satisfação do desejo e da vontade masculinas.

Reinaldo Azevedo, “Por um país mais corrupto, mais burro e mais feio! O PT que protege Valdemar Costa Neto quer tirar Gisele Bündchen do ar”, de novo vociferou contra os intolerantes e autoritários movimentos de minorias, que se empenham em impor sua vontade a toda a sociedade e em destruir os valores universais, como a democracia. Em que pesem seus possíveis e inevitáveis equívocos, os feminismos, bem como todos os movimentos minoritários, não estão engajados em nenhuma tentativa de imposição de uma vontade particular à coletividade: se esforçam para inverter as evidências, para, mediante a crítica da cultura, desnaturalizar aquilo que é tolerado como natural.

O nonsense predomina em parcela das reações. Nirlando Beirão invectiva contra puritanos e recalcados que se sentiram insultados pela nudez de Gisele Bündchen: “Ofender-se à visão de uma Gisele no esplendor de sua forma é, tenho para mim, uma forma de psicopatia. Não tem nada a ver com moral, sexo ou decência”. Beirão aparenta ser incapaz de distinguir entre o conteúdo e a forma. O problema nunca foi a nudez da modelo, mas a forma pela qual é exibida e explorada, ou seja, o que está em questão é o significado dessa nudez, uma representação da mulher construída mediante a imagem de um corpo feminino desnudo. Não conseguindo dissociar o personagem do ator, Beirão percebe as críticas como um ataque a Gisele Bündchen, “brasileira bem-sucedida, reconhecida internacionalmente, exemplo para toda mulher”. Nos anúncios, a modelo interpreta uma personagem, não a si mesma. É essa personagem, não Gisele, o objeto das críticas. Contudo, como Beirão abriu uma via para a discussão, vou explorá-la. A mulher que ele enaltece como um exemplo para a mulher brasileira é aquela que defende que as mães não devem ter autonomia sobre seus próprios corpos, que não devem ter o direito de optar por não amamentar um filho recém-nascido: “Algumas pessoas aqui nos EUA acham que não têm que amamentar, mas eu penso: você vai dar essas comidas cheias de química para uma criança tão pequena? Na minha opinião, tinha que existir uma lei obrigando as mães a amamentarem seus filhos até os seis meses”. É a mesma que novamente estrela uma série de comerciais de televisão de conteúdo sexista, representando o papel de mulher submissa, como em uma série de anúncios da Sky dos quais participou. Toda essa admiração consagrada a esse exemplo de mulher independente, bem sucedida profissional e financeiramente se repetiria se Gisele, reunindo as mesmas características pelas quais é exaltada, fosse, não uma modelo, mas uma prostituta?

Associando a atuação da ministra-chefe da SPM, Iriny Lopes (PT-ES), à atuação do Partido dos Trabalhadores no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara do Deputados, a qual garantiu, por dezesseis votos a dois, a rejeição do pedido de abertura de processo disciplinar contra o deputado Valdemar Costa Neto (PR-SP), Reinaldo Azevedo, “A conspiração dos éticos”, ironizou que feio, indecente e imoral, para os membros do PT, é a imagem de Gisele Bündchen de calcinha e sutiã.

Viana e Ruth, em um arroubo de audácia interpretativa, argumentaram que o personagem submisso nos comerciais não seria a mulher, e sim o homem, tolo, facilmente manipulável, incapaz de resistir ao poder da sedução feminina. Uma mulher que depende financeiramente do marido, o provedor, que precisa obter o perdão dele, a autoridade do lar, por faltas cometidas, que para evitar irritá-lo, talvez enfurecê-lo, para evitar talvez ser repreendida ou, pior, castigada, sente necessidade de seduzi-lo para que aceite as más notícias com tranquilidade é, indubitavelmente, um exemplo de mulher independente. Reinaldo Azevedo, ainda mais audacioso, tão audacioso que confesso não ter conseguido entender sua interpretação, explicou que os comerciais são uma refinada crítica ao machismo, que é desestabilizado pelo fato de o papel de loira desfrutável e esposa submissa ser interpretado por uma mulher independente, bem sucedida e que enriqueceu pelo próprio esforço.

Para o final, reservei a grosseria perpetrada por Augusto Nunes. O colunista de Veja afirmou que Iriny Lopes tinha enviado ao CONOR a representação contra a Hope tão-somente por inveja da beleza de Gisele Bündchen. Não satisfeito com a afirmação, acrescentou, lado a lado, uma fotografia da ministra e uma da modelo, para que não restasse dúvidas de que a horrorosa Iriny não consegue suportar a bela Gisele. No fundo, as mulheres não se aturam e se odeiam secretamente.

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Existe uma gradação da correção política. Uma questão pode ser mais ou menos politicamente correto, de acordo com a maneira pela qual é percebida, isto é, em decorrência do valor que lhe é socialmente atribuído. A relação entre correção política e tolerância é inversamente proporcional, quanto mais politicamente correta uma questão, menos tolerável, e vice-versa. Arrisco supor que, se ao invés de comerciais sexistas, tivesse sido produzida uma série de anúncios tão abertamente racistas quanto, não apenas o nível de indignação teria sido maior, como também o número de defesas da liberdade de expressão contra a censura politicamente correta, menor. Não porque sejamos uma sociedade moderadamente racista, mas porque o racismo é valorado como mais vergonhoso, mais reprovável do que o sexismo, sendo exercido, comparativamente, de modo mais velado. O comercial comemorativo dos cento e cinquenta anos da Caixa Econômica Federal, que mostrava um Machado de Assis branco passeando pelas ruas de um Rio de Janeiro habitado somente por homens, mulheres e crianças brancos, permaneceu cerca de uma semana em exibição na televisão. No dia 19 de setembro, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR emitiu uma nota repudiando o anúncio e informando que pedidos de providências tinham sido encaminhados à ouvidoria e à presidência da CEF, ao CONAR, à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República – SECOM e ao Ministério Público Federal. No entanto, contra a SEPPIR não se registrou a mesma revolta que ora se desencadeia contra a SPM. No dia 21 de setembro, o presidente da CEF emitiu uma nota oficial comunicando a suspensão da veiculação do comercial e lamentando o ocorrido: “O banco pede desculpas a toda a população e, em especial, aos movimentos ligados às causas raciais, por não ter caracterizado o escritor, que era afro-brasileiro, com a sua origem racial”.

Dois acontecimentos também recentes reforçam como a defesa da liberdade de expressão e a reação à censura não são neutras. Em 22 de setembro, servidores da Agência Nacional de Telecomunicações invadiram o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e, sem mandado de busca e apreensão e contando com o apoio da Polícia Federal, recolheram o transmissor da Rádio Pulga, uma rádio livre em operação desde 1990. Conquanto o STF tenha decidido que a Anatel não tem competência para realizar ações de busca e apreensão, anteriormente, no dia 15 de setembro, servidores do órgão, acompanhados de policiais federais, tinham tentado, daquela vez sem sucesso, fechar outra rádio livre, a Rádio Muda, da Unicamp. Correndo o risco de ser repetitivo, pergunto: os paladinos da liberdade de expressão o que falaram, o que escreveram acerca dos episódios?

Em 2009, um anúncio das Havaianas também ensejou a instauração de um processo ético no CONAR, por reclamações de espectadores. No filme, uma avó sugere à neta que ela deveria arrumar um rapaz como o ator Cauã Reymond. A moça não demonstra muito interesse, refletindo que deve ser muito chato ser casada com um homem famoso. A avó então explica que não estava falando de casamento, mas de sexo. A empresa retirou o comercial do ar antes da conclusão do processo. Dependendo da perspectiva que se adote, o anúncio e os espectadores que reclamaram podem ser considerados politicamente corretos ou politicamente incorretos. Esse caso, que ressalta a ambiguidade de cada um dos polos que constituem o binarismo correção e incorreção políticas, evidencia que, em uma sociedade fundada na dominação masculina, o corpo feminino é mudo. Quando adquire voz, quando cessa de se limitar a vocalizar a voz masculina, quando se torna um corpo de mulher, se torna perigoso. As imagens que naturalizam a mulher como amélia são uma brincadeira, são divertidas, despretensiosas. Os comerciais que reproduzem essas imagens são muitos, o da Hope foi apenas um em que os signos, muitas vezes discretos, se apresentaram com demasiada explicitude. A censura à avó contemporânea, confiante e independente, não provocou comoção. Em contrapartida, nos momentos em que as vozes feministas se tornam audíveis, para afirmar que não se veem e não querem se ver em uma imagem que naturaliza a condição de submissão da mulher ao homem, não somente devem ser silenciadas como se torna necessário produzir a crença que são as vozes dos opressores.

Fabiano Camilo : Bacharel em história

Fonte: Amalgama

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