Sobraram no Brasil hashtags de apoio à francesa e textos que narram o amor romântico do casal Macron; solidariedade importa, mas outros casos virão, com presidentes e primeiras-damas, enquanto a submissão não for questionada
Por Giulliana Bianconi, do Época
Foi uma grande polêmica na França quando o presidente Emmanuel Macron tentou instituir um cargo oficial para a esposa Brigitte Macron no seu governo, em 2017. Macron havia prometido em sua campanha que enfrentaria o nepotismo, e ao vir à tona o plano de empregar Brigitte como “primeira-dama oficial”, como ele mesmo nominava, recebeu uma enxurrada de críticas, com direito à petição online assinada por mais de 200 mil franceses que eram contra a possibilidade. O argumento do presidente era que não oferecer um cargo oficial com salário a quem vive e respira aquele papel de primeira-dama não passa de hipocrisia. Sobre o cargo, Macron dizia que ela, Brigitte, definiria onde atuaria.
Macron tem um ponto. As mulheres dos chefes de estado têm missões indexadas às suas vidas tão logo os homens com quem estão casadas abraçam uma campanha presidencial. Espera-se que elas exalem pelos poros a parceria e a segurança que passam ao cônjuge. Discretas ou expansivas, não vão passar em branco e estarão no noticiário obrigatoriamente. Não se nota e nem se noticia, por parecer tão natural que seja assim, mas qualquer primeira-dama tem a agenda subjugada pelos constantes compromissos oficiais em que a sua presença é necessária. Eventualmente, e fora dos protocolos esperados, um presidente ocidental também irá fazer observações ou chacotas sobre a sua imagem. Antes de Jair Bolsonaro comentar a montagem onde um seguidor no Facebook compara fotos de Michelle Bolsonaro e Brigitte Macron, a francesa já havia ouvido de Donald Trump, durante a primeira visita dele como presidente dos EUA a Paris, em 2017, elogios por estar “em forma”.
Pode até soar coerente então que, como defendia Macron ao ser eleito, primeiras-damas tivessem salários instituídos. O que pesa contra a oficialização do cargo de primeira-dama com direito a salário é justamente a leitura mais emancipatória da mulher, que vai muito além da discussão do nepotismo, e nos diz que todo esse contexto acima seria dispensável se não fosse normalizada a submissão das mulheres aos homens poderosos e nem exacerbada a expectativa pela representação dessas mulheres no papel de “troféu a ser exibido”. A objetificação das primeiras-dama é puro sexismo. E a expectativa por uma primeira-dama bela e regente da família é heteronormatividade. Dilma Rousseff foi eleita presidente e governou sem exibir qualquer marido de pernas torneadas.
A objetificação constante das mulheres que estão ao lado de presidentes, sempre instadas a atenderem a padrões de beleza e de comportamento, não suprime o carisma e a trajetória pessoal que possam ter – o que também é transformado em capital político diante do eleitorado. O casal Obama e Michelle é exemplo recente. Mas por mais possível que seja a construção de uma imagem destacada das primeiras-damas, elas se tornam pessoas públicas e admiradas por serem as “mulheres dos presidentes”. E os franceses, ao dizerem não à oficialização do cargo de primeira-dama, de certa forma negam essa dinâmica, essa naturalização da submissão.
Diferentemente do que acontece no Brasil, onde a Constituição não endereça à primeira dama qualquer cargo oficial, mas seguindo a tradição do republicanismo americano, é possível e bem-aceito que ela assuma as tarefas que o marido não vai liderar, que são as relacionadas a cuidados. Michelle Bolsonaro tem sala na Esplanada e equipe formada para trabalhar com voluntariado. Marcela Temer, ao assumir cargo no governo do marido, Michel Temer, como embaixadora do programa Criança Feliz, teve a função justificada pelo fato de ser mãe e ter todos os predicados para o cargo. A tradição das primeiras-dama em tarefas de voluntariado é antiga por aqui. O que não quer dizer que não seja machista.
Na repercussão mundial sobre o mal estar que se instalou entre os presidentes Bolsonaro e Macron após o comentário sobre a foto de Brigitte, sobraram no Brasil hashtags de apoio à francesa e textos que narram o amor romântico do casal Macron. Solidariedade importa, mas outros casos virão, com presidentes e primeiras-damas, enquanto a submissão não for questionada.