O que você vê quando se vê no espelho?

asé, saudou-me o velho ifá assim que adentrei, descalço, na tenda da cafunagem.

mestre cafuna colocou o samovar no fogareiro, inclinou-se e soprou as brasas rubras.

em seguida, deitou-se em seu pontiagudo catre de pregos; magro como um faquir e leve como o vento.

eu me estendi na maca de bambu ao seu lado e, em silêncio ficamos, até a água fervilhar.

lá fora, o sol preparava-se para descansar, espreguiçando seus longos braços em raios multicoloridos que abraçavam as nuvens.

um delicioso cheiro de terra molhada invadia os alvos e diáfanos tecidos da tenda, revelando que chovia não muito longe dali.

ao fim, o velho ergueu-se e, de forma reverente, despejou o líquido fervilhante nas duas xícaras, preparando a infusão; ato contínuo, exalou um fragrante aroma de raízes, ervas, folhas e flores maceradas.

sentamos diante um do outro e, em lótus, meditamos a sorver o líquido tórrido.

mestre cafuna trajava, como sempre, uma túnica alvíssima, dela emergia o pescoço negro, a cara negra, cabelos e barbas encanecidos.

o sorriso era leve, nunca gargalhão, e os olhos luziam uma energia tranquilizadora. tudo ali era paz.

eu preparava meu espírito para os festejos do kwanzaa, por isso fui em busca do mestre dos mestres.

enfim, voltei a deitar-me no leito de bambu e o velho cobriu-me os olhos com duas postas de gengibre, mergulhando-me na escuridão.

então, ele enfiou os dedos longos por entre os meus cachos e afagou-me a cabeça, num delicioso e profilático cafuné.

o exercício de relaxamento durava 25 minutos.

enquanto cafunava-me, ele murmurava, mugindo, um monótono é mágico mantra; tântricamente.

“o que você vê quando se vê no espelho?”, perguntou-me, depois de cafunar.

ainda deitado e de olhos vendados pelas raízes, pensei nas pessoas que veem cravos, espinhas, rugas, cabelos brancos, adiposidade e toda sorte de negatividades que atribuem a si mesmas.

“eu vejo deus”, respondi.

“humhum… é o que vê oxum quando se depara com sua imagem”, disse o sapientíssimo ancião, satisfeito com a minha resposta.

creem, alguns, que o único propósito do espelho de oxum é satisfazer sua vaidade.

se isso fosse verdade, a deusa seria escrava da sua beleza e mergulharia dentro de si, como narciso, aprisionando-se para sempre no reflexo que a refletia, sem refletir sobre si mesma.

mas o que oxum via no espelho que ela via, era a divindade que havia nela e que a via.

mãe oxum carrega sempre consigo o espelho para não se perder de vista.

quando se olha de frente, enxerga toda a ancestralidade que há por trás dela.

por que relato essa minha consulta ao criador do cafunismo? porque estamos em tempos distanciamentos e incertezas; tempos em que é aconselhável evitar abraços, beijos, afagos e cafunés.

é tempo de estar consigo e consigo imaginar que pra muita gente não está sendo fácil.

o primeiro passo é livrar-se de toxidades, negatividades e elevar a autoestima.

é hora de olhar-se menos com olhar do outro e passar a ver a si mesmo; ver-se como és: imagem e semelhança da divindade, essa é a verdade!

se você se olhar no espelho buscando em si mesmo uma alteridade, como se procurasse um outro em si, reificando-se como um objeto abjeto projetado pelos outros, negando quem você é e como você está, estará caindo numa armadilha perigosa.

seu espírito projeta o que você pensa, você é aquilo que você vê em você mesmo.

se, há séculos, estão a maldizer a cor da tua pele, o teu cabelo, o teu nariz e os teus lábios e, ao se deparar consigo no espelho, é isso que você enxerga, você é um prisioneiro.

eles sabem que o espelho pode ser uma ferramenta libertadora ou um armadilha poderosa.

não se esqueça que, na antiguidade, o grande arquimedes usou um gigantesco espelho catóptrico como uma arma, para irradiar fogo contra os navios que tentavam invadir a antiga ilha da sicília.

foi o espelho quem matou a medusa e não a adaga de kadmo.

a horrenda górgona não suportou olhar para si mesma e petrificou-se.

antigas e importantes civilizações como a chinesa, a grega, a egípcia e a asteca faziam uso de espelhos nas mais variadas acepções: mágicas, religiosas, astronômicas etc.

lembra-te que os hemisférios do teu cérebro são uma dualidade, não uma dicotomia, e que o teu corpo, na sua parte exterior, é todo espelhado: o que tem no direito, tem no esquerdo.

os mitificadores contam-nos a história de vampiros que, sendo eles entidades sem alma, não se viam refletidos em espelho.

o que justificaria o espelho como a janela da tua alma.

é claro que trata-se de uma metáfora, senão tratar-se-ia de uma fuleiragem, uma vez que aquelas vampirescas criaturas sem alma, deveriam ser corporificação de coisa etérea e, não, puramente matéria.

o espelho há muito é usado como uma armadilha para reprimir as meninas que, tornando-as obsessivas por retocar qualquer sinal de defeito ou imperfeição, lastimam-se diante da própria imagem…

ou afogam-se nela, narcisicamente.

refletindo sobre o conto de fadas em que a rainha má pergunta ao seu espelho se há no mundo alguém mais linda do que ela, e a resposta é que a beleza está em uma mulher branca como a neve, imagino que isso deva ser especialmente cruel para as meninas negras.

seja como for, veja a beleza e a grandeza que há em você, projeta em ti a imagem da realeza dos ancestrais que te protegem por trás.

teu espírito emana o que você enxerga, você é o que você vê, o que você crê.

saiba que a selfie é o anti self, porque é uma imagem que você projeta pensando em como quer ser visto e não em como se vê.

sê grande, espírito livre, e livra-te de todo o mal.

amei.

é, ó, vê se se enxerga.

saravá.


+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...