Nossa defesa histórica da importância da construção de políticas públicas afirmativas (mulheres, negros e negras, indígenas, idosos, juventude, entre outros), a partir da compreensão de que as desigualdades sociais afetam distintamente cada grupo social, comprova-se, nesta conjuntura, ser fundamental. Isso porque, apesar do Coronavírus ser uma ameaça humanitária global, a possibilidade de sua propagação afeta mais suscetivelmente uns do que outros. Portanto, se “em tempos normais” as políticas públicas específicas são ferramentas necessárias contra as desigualdades sociais, em época de pandemia, é dever do Estado construir ações governamentais conforme as necessidades impostas por uma sociedade diversificada e plural pelas quais as nossas são formadas.
A população negra é um dos grupos mais vulneráveis com a pandemia do coronavirus. Dados do jornal americano The New York Time, nos EUA, informam que as taxas de contaminações e mortes pelo COVID-19 são muito maiores em afro-americanos. Na Espanha, em Madri, coletivos de imigrantes racializados e precarizados criaram o Comitê de Emergência Antirracista como forma de denunciar as condições desumanas estruturais impostas, a violência policial, bem como a falta de uma assistência mínima pelo Estado que garanta a sua sobrevivência- agravada pelo estado de emergência desta pandemia. Embora não haja dados na Espanha, segundo critérios de cor, não é muito difícil entender quais parcelas da sua população estão mais vulneráveis à contaminação do vírus.
Aqui no Brasil não é diferente. De acordo com o mapa divulgado pela prefeitura de São Paulo, a mortalidade do novo coronavírus na cidade é até 10 vezes maior em bairros com piores condições socioeconômicas (favelas, cortiços e conjuntos ou núcleos habitacionais). Em acordo com a realidade de um racismo estrutural, em que a pobreza pressupõe cor e a lugares racialmente identificados- favelas são compostas por maioria negra- o mapa demonstra que na cidade de São Paulo pretos têm 62% mais chances de morrer por Covid-19 do que brancos. Ainda, nestas regiões periféricas, o risco de morrer por Covid-19 é maior para todas as faixas etárias acima de 30 anos.
Ou seja, o racismo estrutural é um sistema de opressão que inclui a população negra em condições e lugares de moradias inadequadas, com aglomerações estruturais, muitas vezes sem saneamento básico, resultando em maior probabilidade de transmissão de doenças. Inclusive, dentro do campo da saúde, além do acesso desigual, a anemia falciforme, que acomete em sua maioria a população negra e provocasintomas semelhantes ao Covid-19, não é considerada como uma das doenças do grupo de risco. Isso demonstra, nitidamente, a falta de um planejamento das políticas de saúde com recorte racial.
No mundo do trabalho, o racismo estrutural pode ser percebido nas condições de trabalhos menos rentáveis e precarizados pelos quais nós, negros e negras, estamos inseridos, que não nos permite permanecer em isolamento e, consequentemente, nos deixam mais vulneráveis à contaminação. Como se não bastasse as desigualdades raciais já expostas, a discriminação racial também é um fator de risco a população negra em tempos de coronavírus. No Brasil, o caso do estudante de Relações Internacionais da UFRJ, Carlos, surpreendido por seguranças de um mercado após entrar de máscara, demonstra que esse utensílio decretado como obrigatório aos brancos é meramente um objeto de proteção, entretanto, aos negros há uma ressignificação do seu uso tornando-se um objeto ilegal movido por estereótipos racistas. Não é à toa os inúmeros relatos de homens negros estadunidenses temendo a sua segurança física com a utilização de máscaras.
Portanto, as desigualdades sociais, que têm cor no Brasil e no mundo, são reafirmadas em momentos como este. Embora o racismo estrutural, por óbvio, não tenha seu início com a pandemia, é por meio dele que a preservação de vidas negras tornam-se ainda mais fragilizadas. É ele que tem colocado nossos corpos negros desde há muito tempo na linha de frente, alinhado a institucionalização de um Estado necropolítico que trata nossas vidas como descartáveis. Desta vez, infelizmente, não seria diferente. O racismo estrutural nos demonstra que o estado de exceção movido por uma pandemia é uma realidade atípica ao conjunto da população, à população negra, ele segue sendo norma.
(*) Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Ciência Política (UFRGS)