O Real – Dois Extremos

Em meio à grande violência policial contra negros e pobres, o PT-BA apostou numa major da PM como candidata à prefeitura de Salvador. A menos de dez dias da eleição, um crítico de cinema, João Paulo Barreto, divulgou o artigo “Força assassina”, no Caderno2 do jornal “A Tarde” (edição de 6/11/2020, p. B7).

A população de Salvador é testemunha cotidiana dessa força (fúria) assassina e inúmeros episódios poderiam aqui ilustrá-la.

A coluna de Barreto trata do documentário “Sem descanso”, dirigido por Bernard Attal, que está sendo exibido em duas salas de Salvador. Segundo ainda a coluna de Barreto, Attal é francês e vive no Brasil desde 2005.

Não vi ainda o documentário, não me atrevo a tanto em meio a uma pandemia. Mas a resenha de Barreto chamou a minha atenção e gostaria de poder ver o documentário, assim que as condições permitirem.

A violência registrada por Attal, facilmente visualizada, a partir da descrição de Barreto, por todos que não assistiram ao filme, como eu, abateu Geovane Mascarenhas de Santana, de 22 anos. A abordagem do jovem pela PM foi feita à luz do dia, no bairro da Calçada, em 2 de agosto de 2014. A abordagem policial violenta foi flagrada por uma câmera. Os policiais levaram a moto e sumiram com o corpo.

Podemos nos referir a situações semelhantes em todo o país. São tantos os casos que podemos no espaço criado por nossa fantasia projetar uma representação fidedigna que costure infinitos recortes sangrentos.

Ocorre-me que algo que parece caracterizar o documentário de Attal, pela descrição feita por Barreto, é a procura do corpo de Geovane feita incansavelmente por seu pai Jurandy, o que desloca a narrativa mais comum, que situa no centro dessa procura, quase sempre, a figura materna.

“Jurandy passou por delegacias, batalhões, hospitais, instituto médico legal e, como o próprio nome do filme diz, não descansou até ter notícias do filho. A confirmação do assassinato surgiu após partes do corpo decapitado de Geovane terem sido encontrados em pontos distintos do subúrbio de Salvador, em uma tentativa covarde e monstruosa de acobertar as atrocidade cometidas dentro do batalhão da polícia, um órgão do Estado que deveria proteger sua população, mas a assassina abusando do poder que esse mesmo Estado lhe confere.”

Entretanto, Bernard Attal não conseguiu trazer para seu documentário a fala do governo e da polícia, como desejava e o diretor referiu-se a negativas, encontros desmarcados e desistências de última hora. “A postura desse governo é de simplesmente não tratar o problema da violência policial.”

As arbitrariedades da polícia são, ninguém duvida, uma demonstração poderosa de força. Mata, esquarteja, dá sumiço. As autoridades, como vimos, recusam-se a falar sobre isso. Uma candidatura vinculada à PM não pode ser explicada fora dessa realidade. O que vimos através da câmera, o que sentimos, nossas percepções, nossos sentimentos. E mais: Geovane não era uma fantasia, não era parte da subjetividade de Bernard Attal, tinha mulher e filha. Alguém que, abordado violentamente pela polícia, desaparece à luz do dia é parte da experiência vivenciada pelo coletivo. Ele é parte integrante da realidade.

Na propaganda eleitoral, a candidata major Denice não parecia sair desse tempo histórico, mas de uma realidade de fantasia, onde não habitam Jurandyr e os demais familiares de Geovane. O sequestro, a tortura, a mutilação e as negativas desaparecem e a campanha eleitoral, separada de tudo isso, trouxe a PM sorridente, transbordando de cuidado e de proteção.

Uma campanha eleitoral pode ser surpreendente a ponto de nos fazer duvidar de nossa apreensão do real? Falo do real concretamente vivenciado por uma coletividade, o real ordinário da farmácia, padaria, cemitério, parada de ônibus, muriçoca e desemprego. A candidatura da major Denice é um modo de o partido dizer que não está politicamente envolvido com a luta para reverter esse quadro de violência e desumanidade?

O filme de Attal quer chegar à verdade. Onde mesmo queria chegar a campanha da major Denice? Onde mesmo pretendia chegar o Partido dos Trabalhadores?

Edson Lopes Cardoso é coordenador do Irohin – Centro de Documentação e Memória Afro-brasileira.
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

+ sobre o tema

O racismo inverso existe e precisa ser combatido

Mais uma vez falando sobre racismo, mas dessa vez...

Está na moda ser preto, desde que você não seja preto

É bem comum encontrar nas redes sociais algumas pessoas...

para lembrar

O racismo inverso existe e precisa ser combatido

Mais uma vez falando sobre racismo, mas dessa vez...

Está na moda ser preto, desde que você não seja preto

É bem comum encontrar nas redes sociais algumas pessoas...
spot_imgspot_img

O que emergirá do tribalismo do ressentimento?

O ressentimento tem encontrado terras férteis em ambientes marcados por mobilidade social limitada, disputas por reconhecimento e pela progressiva assimilação, pela sociedade, das diferenças...

Experts em ressignificação

Estou cada vez mais convencida de que pessoas negras são "experts em ressignificação". A especialização foi se dando ao longo dos séculos (literalmente) de...

Justiça para Herus, executado em festa junina no Rio

Não há razão alguma em segurança pública para que Herus Guimarães Mendes, um office boy de 23 anos, pai de uma criança de dois...