O samba é um ritmo musical que representa a alma dançante, alegre e cativante de diversas comunidades brasileiras. É um patrimônio cultural que une diferentes gerações pela sua sensibilidade e as “batucadas dos nossos tantãs”. O Dia Nacional do Samba é comemorado anualmente em 2 de dezembro, e celebra, a história de resistência e criatividade popular, nascido das influências africanas e lapidado nas rodas de bairros periféricos da Pequena África, no Rio de Janeiro.
Sob o contexto racismo histórico e estrutural do nossos país, o samba sofreu tentativas de exclusão e higienização cultural por partes das elites sociais, a começar como a música foi utilizada como uma ferramenta política do governo de Getúlio Vargas (1930-1945). Com um projeto ideológico que visava a fabricação de um “novo homem brasileiro”, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) impulsionou a produção fonográfica que incentivava a construção de um perfil identitário do trabalhador brasileiro. Nos moldes da lógica corporativista-autoritária, o samba e a música popular foram vistas como uma ferramenta cultural para educar e alinhar (controlar e oprimir) a população às expectativas do Estado Novo.
Grandes composições do samba narram as histórias do Malandro, respeitado como uma figura de resistência e adaptação no período do pós-abolição. As músicas contam as vivências de um homem negro, conhecido pelo seu jeito carismático, boêmio, sagaz e que desafiava as regras morais de uma sociedade que lhe deixava à margem. Nas religiões de matriz africana, o Zé Pilintra representa o malandragem e é cultuado como uma entidade espiritual de muita alegria, sabedoria, proteção e justiça. No entanto, o Malandro foi associado à figura de vadiagem pelo Estado Novo, oposta à ideia de trabalhador projetado por Vargas. Portanto, era preciso “purificar” a malandragem das massas.
Como exemplo, a revista Cultura Política era patrocinada pelo DIP e divulgava as transformações do governo para o grande público, e dentre os assuntos abordados, havia uma seção dedicada para o cenário musical, a rádio. No texto publicado por Martins Castelo (1942), jornalista e responsável pela seção, analisou que o repúdio ao trabalho se originou no contexto da escravidão, mas na década de 1940, persistia devido à “inércia social” em um período em que as desigualdades eram inexistentes e não pertenciam à realidade do Estado Novo.
Dentro da sua bolha de privilégios, Castelo questiona a popularidade de uma canção sobre “um sambista lamentar a vida apertadíssima de certa mulata do morro”. Sobre o estilo de composição, “o ritmo de oito compassos reflete as mesmas aspirações mínimas, na sua alarmante vulgaridade”. Além disso, o autor reduz a todas as canções e marchinhas como repetitivas e monossilábicas, onde todos os compositores se entregavam exageradamente “à exaltação do vagabundo de camisa listrada”. Os temas citados pelo crítico eram vistos como contrários ao tipo de “identidade nacional” que o governo vislumbrava: moldada pela perspectiva branca, cristã, machista, heteronormativa e conservadora. Deste modo, diversas músicas foram censuradas nas rádios e nos espaços populares, incluindo as gírias e o vocabulário “vulgar” em novas composições. O DIP investiu em uma gama de compositores e canções que abordavam uma nova figura do homem trabalhador, purificando o malandro e higienizando o samba pelos moldes da elite intelectual.
O que não serve para a branquitude, ela monopoliza a linguagem como uma tentativa de silenciar as vozes, assim como tentaram (e ainda tentam) com os ritmos negros. A origem do samba é a voz do morro. Ela nasceu das realidades negras e periféricas, que envolvem histórias cotidianas, amorosas e marcadas pela exclusão social. Ainda é possível ver essas tentativas de apagamento histórico, como as violências do racismo cultural e da ganância do mercado turístico brasileiro. Mas o samba, entre tantos saberes que a população negra produz, continuam resistindo e colocando a branquitude no seu devido lugar.
Fonte: CASTELLO, Martins. O samba e o conceito de trabalho. Cultura Política, Rio de Janeiro, n. 22, dezembro de 1942.
Kamila Dinucci C. Silva – Doutoranda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Pesquisa a história do corpo negro nos movimentos de soul no Brasil e racismo na Ditadura Militar.
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