O samurai negro

Aceitamos o samurai branco de Tom Cruise, mas custa-nos imaginar um negro. O racismo é construção ideológica bem-sucedida

por José Eduardo Agualusa no O Globo

Shumon Basar, ‘Journal 66’ (2015). Detail from No Man’s Land IV (2015)

Uma produtora americana, a Lionsgate, está a preparar um longa metragem de ficção, com roteiro de Gregory Widen, o criador de “Highlander”, sobre Yasuke, o samurai negro, um herói afro-nipônico que alguns historiadores defendem ter nascido na Ilha de Moçambique. Em França, foi lançado em janeiro um livro sobre Yasuke, da autoria de Serge Bilé, um jornalista da Costa do Marfim que se especializou na história esquecida dos negros. Escreveu, por exemplo, sobre os negros nos campos de concentração nazis. O livro é interessante. Quanto ao filme, não espero muito.

O interesse por Yasuke no Japão cresceu na sequência de um documentário para televisão, realizado em 2013. Uma equipa japonesa visitou a Ilha de Moçambique, recolhendo imagens da histórica cidade e procurando eventuais descendentes do antigo guerreiro. Não encontrou nenhum. Na Ilha de Moçambique são muito poucos aqueles que conhecem a história de Yasuke.

Alguns historiadores defendem que o nome de Yasuke pode ser uma corruptela de Iusufe, ainda hoje muito popular na região. O que se sabe, graças a testemunhos dos jesuítas e a documentos japoneses da época, é que Yasuke, ou Iusufe, chegou ao Japão em 1579, ao serviço do missionário napolitano Alessandro Valignano, nomeado Visitante das missões jesuíticas nas Índias, o que, na época, incluía também a costa oriental de África. O Visitante, uma espécie de inspetor, respondia diretamente ao superior geral da Companhia de Jesus.

A presença de Yasuke, um homem negro, com 1,88 metro, um gigante para a época, em particular para os padrões japoneses, atraía imensa gente, por onde quer que a comitiva de Valignano passasse, causando tumultos. Oda Nobunaga, rico e poderoso senhor feudal, ouviu falar dele e quis vê-lo. Não acreditando que um homem pudesse ter cor tão escura, ordenou que lhe dessem banho. Naturalmente, Yasuke saiu do banho ainda mais negro e reluzente do que quando entrara. Nobunaga ficou também muito impressionado com a força de Yasuke, com a sua inteligência e refinamento, convidando-o a viver no seu castelo, em Azuchi. Sabendo-se que Valignano sempre defendeu o estudo do japonês e a adaptação dos missionários e dos funcionários ao seu serviço aos usos e costumes locais, supõe-se que Yasuke falaria japonês com fluência.

Yasuke ascendeu rapidamente na corte de Nobunaga, tornando-se o primeiro samurai estrangeiro da história do Japão. Combateu ao lado das forças do seu senhor, até estas serem derrotadas pelo exército do general rebelde Akechi Mitsuhide, em 1582. Nobunaga cometeu seppuku, o cruel suicídio por esventramento dos samurais, e Yasuke juntou-se ao filho de Nobunaga, Odu Nobutada. Distinguiu-se em combate, mas foi finalmente capturado. Akechi Mitsuhide, numa decisão que tanto pode ter tido motivações políticas quanto humanitárias, poupou-lhe a vida e entregou-o aos jesuítas.

A história de Yasuke talvez nos pareça hoje ainda mais extraordinária do que aos olhos de quem a testemunhou. Naquela época, no Japão, os africanos eram vistos com curiosidade; contudo, não há sinais de que houvesse preconceito racial. Yasuke foi admirado enquanto um ser exótico, é verdade, mas o reconhecimento que se seguiu resultou das qualidades humanas e de grande guerreiro que logo demonstrou.

Hoje, olhamos para a figura de Yasuke, com a soma inevitável de séculos de preconceito contra os africanos. Daí que a sua excepcionalidade nos pareça ainda mais excepcional. Aceitamos sem particular estranhamento o personagem do samurai branco representado por Tom Cruise em “O último samurai”, um filme frágil e fantasioso, mas custa-nos a imaginar um samurai negro, africano. O racismo foi uma construção ideológica extremamente bem-sucedida do sistema escravocrata. Esse sistema foi desmantelado, mas o vírus do pensamento racista persiste, de forma mais ou menos insidiosa, no conjunto das sociedades ocidentais, mesmo nas mais progressistas, e para além delas.

Um filme sobre Yasuke, destinado ao grande público, poderia ser importante, contribuindo para uma outra visão de África e dos africanos, enquanto agentes ativos no processo de invenção do mundo. Receio, contudo, que a Lionsgate não resista à tentação de criar mais um herói para o nosso tempo, do tipo “Pantera Negra”, ao invés de procurar compreender a época em que ele viveu e o drama silencioso de um homem que se viu forçado a lutar e se afirmar num universo tão distante do seu.

 

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