“O sistema não está quebrado. Está funcionando exatamente como planejado”

Apesar de entendermos o quanto a construção da masculinidade está intimamente relacionada à desigualdade de gênero que nos afeta, a gente não costuma falar sobre homens. Mas, nesses 30 Dias por Rafael Braga, e diante de tantas injustiças que têm nos impactado recentemente, é difícil não refletir sobre a quem serve a justiça no Brasil e no mundo – e como raça, gênero e classe fazem parte dessa conversa. Ao relacionar a anulação do julgamento do estuprador em série Bill Cosby e a absolvição de Jeronimo Yanes, policial que covardemente assassinou o homem negro Philando Castile diante de sua namorada e da filha dela, o site Fusion trouxe uma afirmação que ressoou forte em nossos corações: “O sistema não está quebrado. Está funcionando exatamente como planejado”.

no Think Olga

Existe uma dissonância fatal entre ideia que temos de justiça e como ela funciona na prática. Talvez o nome gere a confusão. Afinal, por justiça, de grosso modo, entendemos a distribuição adequada de responsabilidades, compensações e penalidades entre os indivíduos envolvidos em determinada situação. Na prática, esse equilíbrio é corrompido a favor de grupos historicamente favorecidos – a saber, homens brancos – ainda que homens negros por vezes ainda recebam algum privilégio de gênero quando este fator está envolvido, como nos casos de Bill Cosby e do diretor de cinema Nate Parker, acusado de estupro e também inocentado.

Apesar de tudo, nada disso é surpresa quando pensamos que essa injustiça encontra espelho nas indignações seletivas, que refletem a profundidade das diferenças estabelecidas entre grupos dominantes e minorizados. É o caso da comoção em torno da morte do estudante Otto Warmbier, preso na Coréia do Norte por roubar uma placa em um hotel do país e condenado a 15 anos de trabalhos forçados. Ele voltou aos EUA em coma e faleceu dias depois. O governo da Coréia afirma que ele foi acometido por botulismo, mas a família rejeita a versão. De toda forma, o caso revoltou americanos e o presidente Trump chegou a insinuar intenções de guerra contra o país, que também possui armas nucleares.

Ainda que não se esvazie a barbaridade da morte de Otto, certamente o fato de ele ser branco e de família influente tem um papel na comoção em torno do caso. É como se apenas com a morte de um jovem branco a opinião pública tenha encontrado motivos para se revoltar contra o regime totalitário que vitimiza o povo norte-coreano há décadas, quando o próprio fato de visitar o país é uma forma de apoiar o governo – afinal, a viagem ajuda a financiar e legitimar a barbárie. Em 2015, o filme A Entrevista, estrelado por Seth Rogen e James Franco, repleto de piadas racistas, fazia troça do país, apesar do clamor e críticas de ativistas asiáticos sobre a gravidade de transformar uma sangrenta ditadura em motivo de risada. Enquanto só padeciam asiáticos, tudo bem fazer piadas e tentar roubar “souvenirs” do regime de Kim Jong-un. Mas, quando esse mesmo regime mata um menino branco, só então eles foram longe demais?

Um silêncio ensurdecedor e uma perigosa relativização se manifestam também quando pensamos em nomes como Claudia Silva Ferreira, Sandra Bland, Rafael Braga, Philando Castile, Kalief Browder, Jandira Magdalena, Charleena Lyles e de tantas outras vítimas de estados que, para quem difere em cor de pele, gênero, orientação sexual ou classe, são tão ou mais cruéis que a Coréia do Norte, mas que se escondem sob um véu democrático que aplaca críticas e dissidências.

O que vivemos hoje, em termos de disseminação de informação, não tem precedentes na história e, apesar de muitas conquistas, estamos apenas começando a descobrir o alcance do nosso poder. Dizer os nomes dessas pessoas, preservar suas memórias, suas verdades e suas histórias deve ser o nosso compromisso. Se olharmos para os dados, para os números, para o sistema, a desesperança toma conta. Mas, se olharmos uns para e pelos outros, nos enchemos da certeza de que as nossas vozes têm poder e, juntas, não podem ser ignoradas.

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