Onda negra, medo branco: a Justiça brasileira ainda usa a eugenia para condenar pretos

O caso de racismo originado na sentença da juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª vara criminal da Comarca da Região metropolitana de Curitiba, que condenou Natan Vieira da Paz, homem negro de 48 anos, a 14 anos e 2 meses de prisão, é um caso clássico de ação formulada a partir do imaginário constituído sobre determinado sujeito ou comunidade por códigos raciais que sequestram a humanidade e cidadania alheia, única e exclusivamente por não pertencer à raça sociológica da elite dominante. No caso brasileiro, a raça branca.

Ao registrar a sentença em longo arquivo com mais de uma centena de páginas, a excelentíssima registrou e reafirmou o seguinte: “Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, EM RAZÃO DA SUA RAÇA, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente”, escreveu Zarpelon na página 107, de 115, de sua sentença condenatória.

 

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O nome do SER HUMANO violado com as palavras proferidas pela magistrada é Natan Vieira da Paz, homem, 48 anos, negro. Autorizada pelo cliente estou divulgando o nome na esperança de que repercuta mais ainda. . Associar a questão racial à participação em organização criminosa revela não apenas o olhar parcial de quem, pela escolha da carreira, tem por dever a imparcialidade, mas também o racismo ainda latente na sociedade brasileira. Organização criminosa nada tem a ver com raça, pressupor que pertencer a certa etnia te levaria à associação ao crime demonstra que a magistrada não considera todos iguais, ofendendo a Constituição Federal. Um julgamento que parte dessa ótica está maculado. Fere não apenas meu cliente, como toda a sociedade brasileira. O Poder Judiciário tem o dever de não somente aplicar a lei, mas também, através de seus julgados, reduzir as desigualdades sociais e raciais. Ou seja, atenuar as injustiças, mas jamais produzi-las como fez a Magistrada ao associar a cor da pele ao tipo penal.

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Ora, afirma ela que por ser de raça distinta do padrão determinado como o belo, aprazível, superior, civilizado e/ou desconstituído de dúvidas quanto a origem e comportamento ilibado (tradução minha aos escritos da magistrada), o cidadão deixaria de ter direitos estendidos a todos os cidadãos e regulados constitucionalmente pela Carta Magna de 1988, para se configurar no criminoso potencial.

Ao ler essa notícia, tende-se a imputar culpa única e tão somente à magistrada, servidora pública, no desvio ético das funções que regem o serviço público e, ainda, no desvio administrativo que rege e/ou deveria reger o ato laboral da magistratura, carreira mediadora daquela significada como cega para as distinções e códigos racializados que coube-nos chamar de Justiça. Porém, cabe-se ainda averiguar de onde nasce e frutifica ato tão repugnante para alguns e empedernido em outros que nomeamos como racismo. Cabe-se averiguar os currículos das escolas de Direito e formação da magistratura no Brasil, qual o lugar de Lombroso, Nina Rodrigues e outros eugenistas que ainda imperam e são referência no pensamento social e político brasileiro.

Ouso afirmar que eles estão vivos, estão entre nós e regulam nossas vidas, são referências silenciosas em atos que se consolidam em decisões judiciais como a dessa senhora, orientam a formação das forças de segurança do Estado ao lidar com a população racializada, mas também são significativos no aparelhamento midiático por brancos, na emissão de códigos não racialmente e socialmente plurais, são influentes no silenciamento de intelectuais negros e suas produções, o que a filósofa Sueli Carneiro classificará de epistemicídio, são essenciais para a Universidade eurocêntrica e racista que temos.

O ato consolidado na escrita da sentença exibe nua e cruamente a sociedade que a elite branca brasileira criou e a que estamos submetidos, e que a Maioria Minorizada em atos, produções e intervenções tenta reconfigurar. Desde a formação da nação, quiçá antes disso, é a sociedade que impede a possibilidade de formação cidadã para todos, estendendo a possibilidade de constituição de um ser completo, cidadão em nossa acepção ao um grupo específico representado por essa elite branca. Importante lembrar o escrito sobre isso do professor Milton Santos, que dirá que a formação social brasileira possibilitará apenas as “cidadanias mutiladas”, luta-se aqui por direitos ao consumo, ao destaque pelo ter, e não pelo ser.

Outro que nos antecede nesta perspectiva que seria reducionista de imputar culpa apenas e unicamente à magistrada, é Clóvis Moura, que nos dirá que no Brasil foram construídas as “barreiras de impedimento”, onde os ferramentais da lei, a incidência nos costumes e a subalternização dos negros aos trabalhos e produção considerada inferior, será traduzida em barreiras que impedem a mobilidade e o reconhecimento de uma cidadania plena. E, dentre outros, a professora Célia de Azevedo que inspirou o título desse artigo e em seu livro apresenta com densidade a arquitetação político-jurídico da elite brasileira para cercear a mobilidade negra no Brasil com receio da perda de espaços de poder e dominação.

Por fim, procura-se com isso trazer à baila que o deplorável ato da magistrada não está desassociado do comportamento majoritário da elite brasileira em todos os seus aspectos. O racismo estrutural da sociedade brasileira é responsável por um prejuízo contumaz ao desenvolvimento e às possibilidades de emancipação plena desta fatia populacional que classifico como Maioria Minorizada. A realidade demonstra que, ao contrário do que apontaram sociólogos brancos, clássicos no pensamento social brasileiro, e muito articulados para pensar as relações de classe e raça, caso de Florestan Fernandes e Caio Prado Júnior , a situação vivida pelo negro brasileiro não é uma mera dificuldade de inserção na sociedade de classes por uma inaptidão que levaria a uma anomia social, mas sim um sistemático mecanismo de exclusão, eliminação e formação de contingente humano, reserva da máquina de destroçar vidas e esperanças.

*Richard Santos é doutor em Ciências Sociais pelo Departamento de Estudos Latino-Americanos da UNB, professor Adjunto da UFSB e líder do Grupo de Pesquisa Pensamento Negro Contemporâneo, UFSB-CNPQ. Autor de Branquitude e Televisão. A Nova (?!) África na TV Pública, está lançando Maioria Minorizada – Um dispositivo analítico de racialidade.

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