Sensação de medo e transtornos psiquiátricos em crianças e adolescentes constrangem quem não viabilizou cidades melhores
Por Flávia Oliveira Do O Globo
Na linha de produção de más notícias em que o Brasil se embrenhou nos últimos tempos, uma em particular comove. Não trata diretamente da tragédia nossa de cada dia, mas de uma melancolia permanente que põe em risco o futuro. Na semana passada, a Rede Nossa São Paulo e o Ibope tornaram pública uma consulta sobre a percepção de bem-estar da população infanto-juvenil da capital paulista. Os pesquisadores conversaram com 805 crianças e adolescentes, com idade entre 10 e 17 anos, na segunda quinzena de junho passado. O resultado deu medo. Literalmente. Os miúdos temem assalto, tráfico de drogas, polícia, racismo, bullying, sair à noite, atropelamento, trânsito, andar de ônibus, trem e metrô, alagamento, multidão, torcidas de futebol.
A franqueza dos meninos deveria fazer disparar sensores de tristeza e vergonha dos adultos brasileiros. Fomos nós que fracassamos na missão de construir cidades acolhedoras para os que chegariam. Em década e meia, pavimentamos cenários de terror e parimos uma geração amedrontada. O ambiente urbano é hostil a ponto de 49% das crianças e dos jovens dizerem que, se pudessem, trocariam de município; 49% ficariam; 2% não responderam.
Sim, a pesquisa foi feita em São Paulo. Mas o espelho da autocrítica sugere que o resultado não seria muito diferente em outras grandes regiões metropolitanas, que igualmente padecem com violência, intolerância e má qualidade dos serviços. O rol de temores une brasileirinhos de Norte a Sul, numa nefasta irmandade.
No Rio de Janeiro, o Departamento de Psiquiatria Infantil da Santa Casa conseguiu contabilizar casos de depressão e ansiedade causados por violência e bullying. De 2011 a 2014, o setor avaliou 3.400 meninos e meninas. Quatro em cada dez crianças (42%) em tratamento por transtornos ansiosos foram vítimas de agressões, físicas ou verbais, ou souberam de algum episódio envolvendo familiares. Dos depressivos, 27% sofreram violência e 3% tinham história de abuso.
Fabio Barbirato, chefe da Psiquiatria Infantil da Santa Casa, diz que a violência é nociva mesmo quando distante. O assassinato da pequena Isabella Nardoni, pelo pai e a madrasta, em 2008, em São Paulo, assombrou crianças Brasil afora. O massacre na Escola Municipal Tasso da Silveira, que deixou 12 mortos, quatro anos atrás, em Realengo, Zona Oeste do Rio, abalou autoestima e percepção de segurança de meninos e meninas de diferentes áreas da cidade. Efeito semelhante teve a morte do médico Jaime Gold, roubado e esfaqueado quando pedalava na Lagoa, há dois meses.
De um lado, crianças e adolescentes enfrentam a violência sofrida (ou praticada) por parentes e conhecidos. De outro, recebem via noticiário e redes sociais informações sobre crimes, atos de intolerância, tensão urbana. “São fatores que aumentam o medo e favorecem a ocorrência de transtornos psiquiátricos”, diz Barbirato, da Santa Casa. Em casa, o especialista recomenda atenção a sinais de melancolia, isolamento, preocupação exagerada, resistência a sair de casa.
Já a responsabilidade pela construção de uma cidade amistosa é de todos. Deveria unir autoridades e cidadãos. Na pesquisa Nossa Rede/Ibope, os jovens deram nota 5,4 ao modo como as pessoas se relacionam e ao respeito às diferenças de cor, religião, cultura. Falta muito para o dez. O recado está dado.