Os bastidores de uma pesquisa com crianças na família e na escola

Ao longo do desenvolvimento de uma pesquisa, diversos desafios são colocados à nossa frente. Nós, pesquisadores/as, temos que constantemente reinventar nossas práticas de pesquisa de acordo com as dificuldades que encontramos em campo. Junto com essa reflexão, é necessário extrair lições que possam servir para inspirar novos estudos. Afinal, uma dissertação de mestrado não é feita para ficar guardada em uma gaveta, assim como uma tese de doutorado não deve apenas contrabalancear uma estante da biblioteca. É com esse intuito que escrevo este texto.

Por Adriano Senkevics

Imagem: Aleksandra Pawloff (Courtesy Photo)

Atualmente, encontro-me em meio ao desenvolvimento de uma pesquisa de mestrado, vinculada à Faculdade de Educação da USP, sob a orientação da professora Marília Pinto de Carvalho. Procurando refletir sobre o meu trabalho de campo, apresentei uma comunicação oral na décima edição do Seminário Internacional Fazendo Gênero, na UFSC (Florianópolis) em setembro passado. Em seguida, publiquei tal artigo, com alterações, na Revista Educação, Gestão e Sociedade (REGS), intitulada Olhares de meninas e meninos: percursos metodológicos de uma pesquisa com crianças na família e na escola, o qual pode ser acessada aqui (SENKEVICS, 2014).

Baseando-me nesse material, pretendo trazer alguns pontos para a reflexão neste texto. Antes de tudo, é preciso explicar, sucintamente, qual é o objetivo da minha pesquisa. O meu mestrado procura avançar na compreensão das desigualdades de gênero na Educação brasileira, focando no papel das expectativas e práticas de socialização familiar, a partir do ponto de vista das próprias crianças. Traduzindo: como meninas e meninos, de camadas populares, percebem e ressignificam as posturas de suas famílias perante atividades como tarefas domésticas, oportunidades de lazer, circulação na rua, perspectivas de futuro etc, e como isso estaria afetando a escolarização das crianças em função de seu sexo.

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Logotipo da Revista Educação, Gestão e Sociedade (REGS), da FACEQ, na qual o artigo foi recentemente publicado.

A fim de realizar essa pesquisa, o primeiro passo que adotamos, na metodologia, foi buscar as famílias a partir de escolas públicas da região, dentro do município de São Paulo. Encontrando famílias que se enquadrassem no perfil da pesquisa (em termos de renda, presença de filhos de sexos distintos, em idade escolar), fomos buscar essas famílias em seus domicílios. No geral, casas de alvenaria localizadas em regiões periféricas da cidade, por vezes em agrupamentos do tipo favela. Após conversas com mães e, quando possível, pais, tentamos acessar as crianças. A minha meta era entrevistar pelo menos um irmão e uma irmã, simultaneamente, no espaço doméstico.

E que dificuldade tivemos! Acessar um espaço privativo já não é fácil, sobretudo quando as crianças são o nosso alvo. Além disso, é complicado estabelecer uma relação com crianças (no caso, de 8 ou 9 anos), quando elas nunca nos viram na vida. Como falar sobre questões tão particulares e, por que não, potencialmente delicadas, como a relação entre elas e sua família, seu lazer, seu envolvimento na manutenção do lar etc. Ainda mais em residências de pequeno porte, nas quais não há amplos espaços separando as crianças de seus “responsáveis”.

Todas essas dificuldades geraram certa frustação. Era como se a pesquisa não estivesse caminhando bem. Apesar de termos entrevistado mais de 10 mães/pais seguindo essa metodologia, estabelecer conversas formais com as crianças parecia menos fluente. Entrevistei, ao todo, três casais de irmãos e, vendo que a coisa não estava rendendo, resolvemos mudar as estratégias de geração de dados. Passei, então, a acessar as crianças pela escola, procurando construir algum relacionamento com elas antes de seguir para as entrevistas.

Acompanhei, assim, uma turma de 3º ano do EF com 26 alunos, maioria feminina, em uma escola pública durante um semestre. Fiz amizade com elas, brincava de quase tudo, envolvia-me em discussões, ajudei um pouco com os exercícios em sala, enfim, procurei estar aberto a qualquer tipo de interação que partia delas, ao mesmo que buscava aproximação com aquelas crianças que não vinham naturalmente ao meu encontro. Após quase um mês de observação participante, iniciei meu processo de entrevistas formais (com o uso de gravador). Antes disso, solicitei que as crianças fizessem desenhos de como eram as casas deles.

 

As crianças, meninas ou meninos, estão por inteiro na pesquisa. Questões de gênero – e outros fatores que influenciam nas relações e interações sociais – são determinantes para o desenrolar de qualquer pesquisa.

Com os desenhos em mãos – e seguindo procedimentos éticos que não serão detalhados aqui – fui levando as crianças em pares ou individualmente no decorrer de um mês para uma sala reservada na escola, a fim de entrevistá-las. Há quem diga, no âmbito da Sociologia da Infância, que entrevistas são pouco úteis para acessar crianças. Creio que dependa da idade e da circunstância. Entre meus sujeitos de pesquisa, com 8 ou 9 anos em sua maioria, a conversa formal foi bastante proveitosa uma vez que uma relação prévia já havia sido construída. Diante do intimidante gravador de voz, eu não era um desconhecido que “invadira” seus lares, senão um jovem bobo que passava algumas manhãs brincando e interagindo com elas no espaço escolar.

Nesse processo todo, foi patente como as relações de gênero influenciaram a metodologia de pesquisa, e é justamente esse ponto que discuto no artigo mencionado acima (SENKEVICS, 2014). E não poderia ser diferente: ao entrar em contato com “crianças”, meus interlocutores não eram anjinhos sem sexo. Ao contrário, eram meninas e meninos com experiências e vivências próprias, carregados de significados de gênero que marcavam suas construções de masculinidades e feminilidades em uma sociedade sexista e generificada como a nossa. Essas expressões de gênero são determinantes para se entender as possibilidades de interações entre eu, na condição de um jovem pesquisador branco do sexo masculino, e elas.

Assim, o gênero esteve presente – não sei se essa é a palavra ideal, na verdade, porque talvez seja difícil precisar sua “presença” – ou melhor, claramente presente, desde o início da minha relação com aquela turma de estudantes. Com que tipo de brincadeiras ou jogos esperava-se que eu me envolvesse? Que interações poderiam ser construídas entre as garotas e eu? Como eu seria enxergado na escola pela equipe de docentes e funcionárias? De que forma as masculinidades e feminilidades condicionavam as informações que se poderia obter dessas crianças? Enfim, questões complexas e que não podem ser respondidas por completo – parte de suas respostas, inevitavelmente, cabe ao desconhecido.

São pontos, portanto, que deixo como uma sugestão. Investigar os bastidores, os percursos metodológicos, o trabalho de campo, ou como queiramos chamar, de uma pesquisa é tão fundamental quanto analisar seus próprios resultados e conclusões. Resultados esses, por fim, que são gerados em um processo de relação e interação social, dentro do qual os sujeitos, por completo, interagem, deixando à vista tanto os distanciamentos quanto as aproximações. Nessas idas e vindas, gênero é um elemento de suma importância.

Fonte: Ensaios de Gênero

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