Os brancos também sabem dançar

Escritor e músico angolano Kalaf Epalanga vem ao Brasil para bate-papo

Por Djamila Ribeiro, da Folha de São Paulo

Linoca Souza/Folhapress

Ultimamente venho pensando em Angola, sobretudo após ter me debruçado nas últimas semanas sobre o livro de Kalaf Epalanga “Também os Brancos Sabem Dançar”, um dos mais vendidos da última Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip.

Ganhei um exemplar de suas mãos após nos encontrarmos por uma tarde agradável em Berlim, em meio a conversas sobre o Brasil, Angola, as relações coloniais e a exposição de Grada Kilomba em São Paulo —Epalanga é um dos atores do segundo ato sobre Édipo presente na instalação da artista.

Do encontro levei a obra, cuja narrativa de sua história com a música se mescla com reflexões sobre o país africano e sobre ser estrangeiro em Portugal.

Epalanga está no Brasil com o livro após fazer anos de sucesso nas pistas de Angola e Europa com a banda Buraka Som Sistema, uma das mais proeminentes do ritmo kuduro.

A dança é inspirada no ator Jean-Claude Van Damme —uma cena em que dançava com o quadril duro se tornou épica para uma geração de angolanos. O nascimento do gênero africano, ironicamente pela dança quadrada de um homem branco belga, é descrito pelo autor: “Numa das cenas de ‘Kickboxer: O Desafio do Dragão’, um dos filmes de porrada que mais debate gerou na Benguela de minha meninice, tornando-se um dos favoritos da minha geração, o ator belga, o próprio rei da espargata, dança embriagado ao som do tema ‘Feeling So Good Today’, de Beau Williams, acompanhado por duas tailandesas. A icônica cena de Van Damme a dançar de forma desengonçada e sem ginga, movendo o corpo sem mexer o quadril, que parecia preso, ou duro, acendeu uma luz qualquer em Tony Amado, nosso Joseph Smith Jr., que usando o molde rítmico dessa coisa eletrônica a que chamávamos de batida, saltou inspirado para o sintetizados, sacando praticamente de uma assentada só o clássico ‘Amba Kuduro’, uma homenagem à ‘musa’ Jean-Claude. E assim nasceu, em gênero e dança, o kuduro”.

É a partir da historiografia do ritmo, ao mesmo tempo profunda e leve de se ler, que Kalaf faz um passeio pelas memórias de Angola, cuja guerra civil durou de 1975, logo com a independência de Portugal, até 2002. Um dos lugares é o mercado Roque Santeiro, batizado em razão da novela brasileira de sucesso de 1985.

Lá estão cravadas histórias marcantes, como também é no mercado que se manifestam as tensões presentes, inclusive raciais: “O Roque estava estrategicamente situado a escassos quilômetros do porto de Luanda, e sempre foi do conhecimento geral que os contentores destinados ao abastecimento do comércio da cidade não chegavam a passar pela alfândega.

No auge da guerra civil, até os produtos destinados à ajuda humanitária iam parar ao Roque. Confrontados com realidades para as quais poderíamos não estar preparados, se o Roque tinha um lado pitoresco, colorido e até festivo de mercado no coração de uma capital africana com as características de Luanda, era também palco de tensões raciais, políticas e regionais que circulavam no interior da sociedade angolana em silêncio, mas que aqui poderiam assumir proporções assustadoras”.

Lendo sobre a descrição do Roque e seus dilemas com o passado, me veio à mente como há trocas interessantes entre angolanos, angolanas, brasileiros e brasileiras. A eleição do mercado como ponto de partida para uma aventura narrativa não poderia ser mais eficaz.

Babalorixá e doutor em linguística pela Universidade de São Paulo, Sidnei Barreto Nogueira explica a importância do mercado, domínio de Exu, orixá da comunicação com todos os outros orixás, como o
coração da comunidade, pois é nele que se fazem as trocas.

“A banca de Exu tem dois lados”, uma de suas poderosas frases, traz ensinamentos de vida de reciprocidade. Nas tradições afro-brasileiras, o mercado, aqui também em uma acepção metafórica, “existe para que a chama da troca se mantenha viva. Precisamos aprender mais a trocar do que a comprar. A compra beneficia um. A troca beneficia ambos. Porque a banca do mercado tem dois lados. Ela sempre deve ter dois lados”, afirma Sidnei Nogueira.

Nesse sentimento de reciprocidade, desejo boas-vindas a Epalanga, mais uma vez no Brasil, agora para bate-papo nesta sexta (4), às 19h30, na Ocupação Cultural Mateus Santos (av. Paranaguá, 1.633, Ermelino Matarazzo). O convite chegou por Márcio Black, engajado ativista na luta por direitos da população negra brasileira.

É um evento gratuito na periferia de São Paulo para uma conversa sobre o livro, suas influências musicais e reflexões sobre a relação do Brasil com o país africano. Imperdível para ampliar os horizontes e trocar visões entre Brasil e Angola.

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