Os Descerebrados

(Foto: Reprodução/ Twitter)

por Lelê Teles enviado para o Portal Geledés

 

Reprodução/ Twitter

por deus, disse uma voz à minha nuca, morria e não sabia que cléo pires era cotôca.

não fale assim, cutucou a moça ao lado, constrangida.

o ônibus tava cheio e as duas viam uma notícia pelo celular.

estiquei meu pau de selfie e deixei o celular desligado, para espelhar as fofoqueiras atrás de mim, curioso.

a fã de cléo pires tinha um enorme decote em V, um busto apojado e os cabelos tingidos de amarelo.

a colega, de sorriso amarelo, seguiu com a prosa.

gente, e esse gatinho do vilhena, coitado. deve ser difícil ter que viver com uma perna assim. pelo menos a dele deve ser de marca, né? deve ter custado caro?

o que diabo estão a dizer essas senhoras?, pensei comigo. recolhi o pau de selfie, e consultei pai google: “cléo pires, vilhena…”

bingo.

tava lá a foto. cléo e vilhena fantasiados de atletas paralímpicos. uma sem o braço, outro sem a perna.

com mil diabos, pensei.

então percebi um murmúrio dentro do busão. todos, até o motorista, olhavam no celular e faziam comentários com os estranhos.

por isso ela nunca fez papel de mãe, só faz papel de piriguete, porque como ela ia ninar uma criança?, perguntou a gordinha entalada na roleta.

esse menino quando fez malhação tinha as duas pernas, deve ter sido tubarão, ele é chegado num surf e numa maconha, disse o motorista.

alguém falou em maconha?, perguntou, sobressaltado, um rastafari que cochilava com a cabeça colada na janela do ônibus.

exemplo de superação, minha filha, quem tem fé supera tudo. esses aqui eram atores, ficaram paralíticos e agora são atletas, pra deus nada é impossível, afirmou a moça de vestido longo, cabelo longo e face pálida.

deixe jesus fora disso, minha senhora, atacou o baixinho com uniforme de frentista. jesus nunca curou um amputado.

roberto carlos é amputado, gritou o cobrador.

roberto carlos parou de jogar?, perguntou a gordinha da roleta, espantada.

não, senhora, o perneta é o roberto cantor, ele e o wagnar mondes.

quem é wagner mondes?, perguntou o pré-adolescente vendedor de bala.

oxe, assanhou-se o rasta. agora eu pergunto, se roberto carlos fez música pras baleias, pros meninos, pra jesus cristo, pros caminhoneiros e pros taxistas, fez música pras gordinhas e pras coroas, por que ele nunca homenageou os deficientes como ele?

a pergunta do maluco sacudiu o busão.

todos opinaram.

roberto carlos bem que poderia abrir os jogos paralímpicos, sentenciou o PM, em pé e escorado na porta traseira. já pensou, seguiu o meganha, um rei aleijado e brasileiro, que exemplo pro mundo?

nunca vi roberto carlos de sunga, então é isso, como a tv mente pra gente, meu deus. benzeu-se uma senhora com uniforme das casas bahia.

transexual é atleta paralímpico, moço, já que eles amputam um membro?, perguntou-me a adolescente ao meu lado.

em silêncio, puxei a cordinha, me levantei e saí fora daquele manicômio de midiotas.

as pessoas já não sabem o que é realidade e o que é ficção. o que é verdade e o que é mentira.

o que é maquiagem, o que é photoshop, o que é ruga e o que é botox.

são uns autômatos, descerebrados, marionetes, joguetes do midiotismo.

são tempos trevosos.

é um mundo povoado por zumbis caçadores de pokémons.

desci e fiquei olhando o ônibus partir, por um instante vi que todos estavam vestidos como o espantalho do mágico de oz.

todos sem cérebro.

como cléo e vilhena.

palavras da salvação.

 

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.
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