“O Direito é a arte de atribuir a cada um o que é seu”
(Ulpiano, Roma, séc. III d.C.)
Uma recente decisão judicial suspendeu a vigência dos editais de incentivo aos projetos de cultura afrobrasileira, lançados pelo Ministério da Cultura em novembro passado. E o fez atendendo a uma ação, ajuizada no Maranhão, segundo a qual os editais abririam “um acintoso e perigoso espectro de desigualdade racial”. Mas o MinC declarou em nota que vai recorrer da decisão.
Se o recurso fosse elaborado aqui no Lote, data venia, a argumentação estaria límpida e clara, em muita coisa que já se sabe e que já dissemos. E nossa exposição, começaria pela citação do trecho inicial de um livrinho de bolso, tão pequenino na forma quanto grande no conteúdo.
Trata-se de “Cotas Raciais: por que sim?”, publicado pelo IBASE (Rio, 3ª. ed., 2008) sob a coordenação da “sobrinha” Cristina Lopes, autora do texto, que assim começa:
“A identidade nacional brasileira, a partir da década de 1930, foi construída sob o mito da democracia racial, ou seja, sob a crença de que somos uma nação onde pessoas de todas as raças vivem em harmonia, sem conflitos ou segregações. Diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos e na África do Sul, onde houve um ‘racismo oficial’, a segregação racial nunca foi legalmente adotada no Brasil. E é essa uma das razões que fazem com que as reivindicações de movimentos sociais negros e anti-racistas, especialmente a adoção de políticas públicas especificas para os (as) afrodescendentes, pareçam absurdas para grande parte da população brasileira.
“A discriminação racial no Brasil é mesmo bastante particular e precisa ser vista com atenção. Não tivemos apartheid, mas o racismo persiste na nossa sociedade, muitas vezes sem se declarar, aparecendo mais em atitudes e menos frequentemente na fala. Mesmo nesse ultimo caso, o preconceito é jogado para o campo da “brincadeira” – que, teoricamente, não machuca ou prejudica ninguém –, pais não é bem visto dizer que somos racistas ou que temos atitudes preconceituosas. Se perguntarmos, aleatoriamente, se existe preconceito racial no Brasil, as pessoas responderão que sim. No entanto, ao perguntarmos se a pessoa é racista, ela provavelmente dirá que não. Como, então, conseguirmos ter racismo se ninguém o pratica? Isso caracteriza o racismo à brasileira, que, mesmo considerado sutil ou cordial, tem conseqüências práticas graves e de alto custo social”.
Estas seriam as preliminares do nosso recurso. Que, no mérito, falaria das dificuldades que têm os afrodescendentes agentes da produção cultural afro-originada, neste país, em fazê-la circular num ambiente em que os mecanismos de incentivo excluem sumariamente aqueles que não são “do ramo”, ou seja, que não dispõem do necessário “capital” de relacionamentos sociais.
A exclusão do povo negro no âmbito da chamada “economia da cultura” é um fato incontestável. Quando nós aparecemos um pouquinho, é sempre como objetos e não como sujeitos da produção cultural. E isso se dá, principalmente, em razão de que os mais atuantes agentes da produção cultural, os que se beneficiam dos bons patrocínios e sabem dos famosos “editais”, são, de um modo geral, gente detentora do chamado “capital” de relacionamentos, acumulado desde o berço.
Por aí iria a nossa argumentação. E para instruir o processo, juntaríamos páginas e mais páginas das revistas semanais, de jornalismo, variedades e glamour que circulam em nossas grandes cidades, e principalmente de reportagens que mostram grupos de profissionais bem sucedidos no ambiente da produção cultural.
Mostraríamos esse material; e o faríamos eloquentemente, assim bradando ao Tribunal: — “Contem, Senhores Juízes, contem, Excelências: quantos pretos ou pardos (denominações oficiais) são mostrados nos anúncios ou em sua atividade na música, nas artes visuais, no teatro, na literatura, na moda ??? Vejam, Excelências! Eles só estão na ‘dança de rua’, no ‘passinho’, no ‘funk melody’, no ‘batidão’. Até no samba quem manda são os pesquisadores universitários, senhores juízes !!! Não que sejam formas menores de cultura, Excelências! Nem que a pesquisa universitária no samba seja prejudicial. Claro! Mas a realidade é que existem muitos negros se destacando em áreas de mais prestígio! E eles querem e precisam mostrar seu valor. Basta de cultura negra sem negros, Excelentíssimos Membros desta Egrégia Corte!!!”
**
Nesse momento, no Tribunal do Astral, o Espírito do Direito, já falecido, enxuga uma furtiva lágrima.
Fonte: Nei Lopes