Os negros nas histórias em quadrinhos – parte 2

A Era de Prata (1956 – 1969) Ebulição Social No final dos anos cinqüenta e início dos sessenta o Movimento Negro começava a tomar as ruas dos Estados Unidos, reivindicando a melhoria da condição de vida dos afro-americanos.

por Claudio Roberto Basilio no HQ Maniacs

O Movimento Negro se dividia em diversas vertentes, desde a mais pacifista, que era representada pelo Movimento dos Direitos Civis do Reverendo Martin Luther King até as mais radicais, que podíamos ver na Nação do Islã de Malcom X e no Partido dos Panteras Negras. Tal ebulição social acabou se refletindo nos quadrinhos e é sobre o surgimento de alguns personagens negros nos comics nesse período que esse artigo vai tratar.

Nesse período, o mercado americano de quadrinhos foi tomado de assalto pela ascensão da Marvel Comics, ascensão essa capitaneada por Stan Lee e por um rol de personagens que, pela criatividade com que foram elaborados revolucionaram o conceito dos super-heróis.

Só que, além da criatividade, uma das coisas que mais ajudaram a Marvel a chegar aonde chegou foi o fato de que tanto Stan quanto os artistas que trabalhavam com eles, tinham, como poderíamos dizer, um “ajuste fino”, que os ajudava a perceber toda a agitação e mudança de costumes que aconteciam naquela época.

E com certeza, esse “ajuste fino” foi fundamental para a aparição de personagens como o soldado “Gabe Jones”. Gabe, que apareceu de cara na estréia do gibi de guerra “Sgt. Fury and his Howling Commandos” (Sargento Fury e o Comando Selvagem) em 1965, era um músico de jazz que participava de um regimento do Exército americano na Segunda Guerra, composto por figuras das mais diversas origens étnicas, desde ítalo-americanos, judeus e até mesmo um suposto homossexual!

Ao contrário dos personagens negros do passado, Gabe se expressava em um inglês impecável e sua bravura no campo de batalha era sempre ressaltada. Mas um personagem negro ainda mais ousado seria criado no ano seguinte pela “Casa das Idéias”.

No ano de 1966, muito provavelmente inspirado pelo surgimento do Partido dos Panteras Negras naquele ano (apesar de até hoje Stan jurar de pés juntos que não pensou em política na hora), Stan Lee e Jack Kirby introduziram nas páginas de “Fantastic Four #52” aquele que pode ser considerado o primeiro super-herói negro da história dos comics: o “Pantera Negra”!

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Antes do Pantera aparecer, outros heróis “negões” deram o ar da graça, mas ele foi realmente o primeiro a ser concebido dentro dos clichês inerentes ao gênero “super-herói”: o Pantera usava uma fantasia e realizava proezas que um homem comum não poderia fazer.

Avengers #52: a entrada do Pantera Negra na equipe
Avengers #52: a entrada do Pantera Negra na equipe

E a origem que Stan e Jack criaram para o personagem sem dúvida alguma é interessantíssima. Tchalla, o verdadeiro nome do herói, era o príncipe herdeiro de um fictício reino africano chamado Wakanda. Wakanda era um pequeno país africano que era muito visado por praticamente ser o único lugar do mundo onde podia ser encontrado um metal raro chamado vibranium e a ambição em possuir tal elemento levou um criminoso americano até lá.

Enfurecido pela recusa de Tchaka, o rei de Wakanda, em fornecer o metal, o vilão o matou diante de sua corte e o adolescente Tchalla, que prontamente decepou a mão do sujeito com uma espada. Anos mais tarde, o tal vilão americano se transformaria no super-vilão Garra Sônica, mas nesse ínterim, Tchalla rumou para a América, onde estudou e se transformou em um brilhante cientista.

Ao retornar à Wakanda, Tchalla participou de ritual onde ingeriu uma erva sagrada que expandiu sua força, agilidade e sentidos. Após o ritual ele foi ungido Rei de Wakanda e passou a vestir um traje que lembrava o animal sagrado dos wakandenses, a pantera negra.

Utilizando recursos gerados pela negociação do vibranium, Tchalla rapidamente transformou o seu reino na nação mais evoluída do ponto de vista tecnológico no Universo Marvel. O público gostou do que viu e o personagem fez mais algumas aparições no título do Quarteto. Em 1968, no gibi “Avengers #52”, o Pantera Negra se torna membro dos Vingadores.

O interessante é que o personagem, até para fugir da óbvia associação ao Partido dos Panteras Negras, durante um bom tempo era chamado só de Pantera, e até mesmo o nome de “Leopardo Negro” ele recebeu. Somente em “Avengers #100”, em 1970, foi estabelecido que a identidade heróica de Tchalla realmente se chamava Pantera Negra.

A Marvel continuou em sua atitude progressista e Stan Lee criou para as histórias do Homem-Aranha, dois coadjuvantes que até hoje são recorrentes nas aventuras do aracnídeo: Joe Robertson e seu filho Randy Robertson. Joe estreou em 1967, no gibi “Amazing Spiderman #51”, exercendo a função de editor dentro do jornal Clarim Diário.

Com seu comportamento moderado, fazia o contraponto perfeito para a personalidade intratável do seu chefe J. J. Jameson. Porém, moderação não fazia exatamente parte da personalidade do seu filho Randy. Randy, que surgiu pela primeira vez em “Amazing Spiderman #67”, representa dentro das histórias do Aranha, uma figura muito comum naqueles loucos anos sessenta, que era o militante de esquerda que participava de todos os movimentos de contestação da época.

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Joe e Randy Robertson

Um dos momentos mais marcantes e mais relevadores de sua personalidade foi quando em “Amazing Spider-Man #96” ele questionou Norman Osborn (identidade secreta do vilão Duende Verde) sobre por que as pessoas ricas não ajudavam os pobres e os negros nos Estados Unidos.

Já deu para perceber que a Marvel lançou alguns personagens negros fixos em suas histórias nos anos sessenta, e tal constatação nos leva à seguinte pergunta: o que a DC Comics fazia nessa época em relação aos personagens negros? Bom, até por ser, vamos dizer assim, mais “conservadora”, a DC era bem mais lenta ao lidar com esse assunto.

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O escritor Robert Kanigher e o desenhista Joe Kubert chegaram a elaborar para a revista “Our Army at War #113” de 1961, uma história do Sargento Rock, chamada “Eyes of a Blind Gunner”, que mostrava que a colaboração e a amizade entre dois soldados, um negro e outro caucasiano, era perfeitamente possível. O soldado negro, que se chamava Jackie Johnson (em homenagem ao boxeador de mesmo nome), chegou a reaparecer em outras histórias do Sargento Rock e da Companhia Moleza que focavam o preconceito dentro do Exército americano, mas infelizmente era raro a DC publicar histórias com essa temática.

Houve uma, publicada em “Justice League of América #57” de 1967, chamada “Man, Thy Name Is – Brother”, produzida pela histórica dupla Gardner Fox/Mike Sekowsky, onde um adolescente negro mostrava ao Flash o preconceito que pessoas que tinham a mesma cor da pele que ele sofriam na América.

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JLA #57: uma história sobre racismo

Praticamente todos os personagens negros da DC nos anos sessenta eram coadjuvantes temporários nas aventuras dos heróis, mas em 1967 houve uma tentativa de se introduzir um herói negro em seu panteão. Foi lançada nesse ano a revista “Secret Six”, escrita por Nelson Bridwell e desenhada por Frank Springer que contava as aventuras de seis pessoas que, devido ao fato de deverem a própria vida a um sujeito chamado “Mockingbird”, eram obrigadas por ele a realizar diversas missões secretas de alto risco.

O grande detalhe da história era que um dos seis personagens era o próprio “Mockingbird” disfarçado! Entre os membros do “Secret Six” havia o brilhante cientista negro de meia-idade August Durant e durante anos muitos fãs suspeitaram que Durant fosse o “Mockingbird”.

Secret Six #3: participação do prof. August Durant
Secret Six #3: participação do prof. August Durant

Como a série foi encerrada no número #7 só em 1988, somente quando as histórias do grupo foram retomadas no gibi “Action Comics Weekly” é que foi confirmado que realmente Durant era o cérebro por trás das ações do grupo. A DC até demonstrou coragem ao lançar um personagem negro regular em um gibi de espionagem, mas a primeira tentativa de se criar um super-herói negro na editora, causou uma crise editorial na DC que envolveu muitas pessoas e que até hoje é uma terrível mancha em sua história.

Teen Titans #20: a polêmica “Titans fit the
Teen Titans #20: a polêmica “Titans fit the

Em 1969, os jovens escritores Marv Wolfman e Lein Wein escreveram para a edição #20 de “Teen Titans” uma história, chamada “Titans Fit the Battle of Jericho” na qual a Turma Titã enfrentava um gangster que estava manipulando a raiva e o inconformismo de uma gangue de adolescentes negros. Nessa missão, eles eram ajudados por um misterioso super-herói chamado Jericho.

Teen Titans #32: Kid Flash e Mal Duncan
Teen Titans #32: Kid Flash e Mal Duncan

No final da trama, é revelado que Jericho é um rapaz negro chamado Ben, o irmão mais velho de uns dos membros da gangue, e que havia se disfarçado de super-herói para provar ao seu irmão que, mais importante que a uso da violência era a luta pacifica pela igualdade entre todas as raças.

O roteiro foi aprovado pelo editor Dick Giordano, chegou a ser todo desenhado por Nick Cardy e a história estava prontinha para ser publicada, mas na última hora, a cúpula editorial da DC representada na figura do editor Carmine Infantino, vetou a sua publicação. Infantino praticamente invadiu a gráfica e mandou suspender tudo, alegando que a DC não poderia publicar um gibi que pregasse o “racismo ao contrário”, racismo esse que na sua opinião se caracterizava por frases dentro do roteiro como “Eu vou dar um jeito nesses últimos 300 anos de racismo, seus brancos metidos!”

Na verdade, muito provavelmente os editores da DC tinham medo mesmo era uma reação negativa em estados mais conservadores dos EUA, em especial do Sul. Para dar um jeito na situação, eles chamaram o genial desenhista Neal Adams para refazer a história. Neal fez o seu trabalho, transformando o negro Jericho em um adolescente branco de nome Joshua, refazendo vários diálogos.

Os negros que apareciam no gibi foram pintados de azul a fim de se retirar qualquer contexto racial do roteiro. É desnecessário dizer que tanto Marv Wolfman como Lein Wein ficaram furiosíssimos com as alterações e tal incidente fez com que ambos saíssem da DC e só retornassem algum tempo depois.

Anos mais tarde, Marv Wolfman declarou o seguinte sobre a censura do seu argumento: “Todos nós que estávamos envolvidos percebemos logo que a história teve sua publicação suspensa não por ser ruim, mas por ter um super-herói negro”. Meses depois, em “Teen Titans #26” entrava para a equipe um jovem negro sem super-poderes que se chamava Mal Duncan.

No script elaborado por Robert Kanigher e desenhado por Nick Cardy, Mal vivia em um violento gueto negro e ajudou os Titãs, que estavam em suas identidades civis, a solucionarem o assassinato do Prêmio Nobel da Paz Arthur Swenson. Como mesmo sem super-poderes Mal demonstrou coragem em situações de perigo, ele foi convidado pelo benfeitor dos Titãs, o milionário Loren Júpiter, a se tornar membro da equipe. Se Mal foi criado como uma compensação pela censura de “Titans Fit the Battle of Jericho”, nós nunca saberemos… Enquanto a DC censurava gibis com super-heróis negros, em 1969 a Marvel lançava em “Captain América #117”, um novo personagem que iria adquirir grande importância nos anos subseqüentes.

No argumento elaborado por Stan Lee e desenhado por Gene Colan, o arquiinimigo do Sentinela da Liberdade, o Caveira Vermelha, usa o um artefato chamado Cubo Cósmico para trocar de corpo com o herói e assumir a sua identidade. De quebra, ainda usando o Cubo, o Caveira manda o nosso herói para a “Ilha dos Exilados”, um lugar repleto de criminosos dispostos a arrancar a pele de qualquer um que ouse desafiá-los. No exato momento em que o Capitão estava sendo subjugado pelos bandidos, uma águia surge dos céus e o socorre dos malfeitores.

No decorrer da história, descobrimos que a águia, chamada Asa Vermelha, é controlada telepaticamente por um sujeito negro de nome Sam Wilson. Ao ficarem frente-a-frente, Sam lhe conta que nasceu e se criou no Harlem e que veio à Ilha dos Exilados em busca de serviço, mas que os criminosos locais preferiam escravizar a contratar pessoas.

Após ouvir a história, o Capitão América propõe que ambos unam suas forças e sugere que seu novo amigo use um uniforme para inspirar os nativos locais contra os Exilados. A dupla consegue derrotar os Exilados, fugir da ilha e, ao retornar à Nova Iorque, consegue também derrotar o Caveira Vermelha e reaver o corpo do Capitão América. Impressionado com a coragem e vislumbrando um grande potencial em Sam Wilson, o Capitão o convida para ser seu parceiro. Sam aceita, e acaba assumindo o nome de “Falcão”.

Captain America #117: a estréia do Falcão
Captain America #117: a estréia do Falcão

Durante o transcorrer das histórias, o Falcão se transformou em muito mais que um parceirinho do Capitão América, sendo retratado sempre em condição de igual do Sentinela da Liberdade. Tanto que, a partir da edição #134 a revista do Capitão passou a se chamar “Captain America and the Falcon” e assim ficou até o número #223. Anos depois, o roteirista Steve Englehart redefiniu a origem do personagem no gibi “Captain America and Falcon #186”, mostrando que na verdade Sam Wilson era um criminoso que, após uma lavagem cerebral feita pelo Caveira Vermelha foi “plantado” na Ilha dos Exilados para ser eventualmente usado contra o Capitão.

Captain America and Falcon #186: nova origem
Captain America and Falcon #186: nova origem

Naturalmente, Sam consegue superar a lavagem cerebral e se redime de seus crimes passados. Mas aí estamos começando a falar de coisas que aconteceram nos anos setenta, e os anos setenta são justamente o tema da próxima parte dessa série sobre os personagens negros das histórias em quadrinhos.

leia também: 

Os negros nas histórias em quadrinhos – parte 1

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