Os prós e os contras

Fonte: Jornal Correio Braziliense – Coluna Opinião

Há anos vimos discutindo com as principais organizações da sociedade civil brasileira o fato de que, ao contrário do que ocorreu em outros países marcados por diferenças e conflitos raciais, no Brasil nunca emergiu um posicionamento político efetivo de lideranças brancas contra as práticas racistas de nossa sociedade. Para citar apenas dois casos emblemáticos, lembremos a presença histórica de Marlon Brando na memorável Marcha pelos Direitos Civis liderada por Martin Luther King, ou o papel extraordinário do jornalista Donald Woods contra o regime do apartheid sul-africano. Personalidades brancas, simbolizando com suas presenças nessas lutas outros anônimos brancos que se recusaram a aceitar o racismo como estratégia de obtenção de privilégios às custas da opressão de outros grupos raciais.

No Brasil, ao contrário, mesmo o abolicionismo brasileiro, com as exceções de praxe, não alcançou exprimir vontade política de inclusão da massa de ex-escravos. Esgotou-se nos desejos e interesses das elites brancas de modernização do país (sendo um dos quesitos para isso a adoção do trabalho livre) e em assegurar entre si o rodízio no poder. No pós-abolição, o decantado mito da democracia racial encarregou-se de aplacar a consciência branca de qualquer responsabilidade em relação à marginalização histórica dos negros.

A primeira e mais consistente iniciativa nessa direção é a bem-vinda campanha Onde você guarda o seu racismo, desencadeada por um conjunto de organizações da sociedade civil de maioria branca que se posiciona publicamente como uma força política anti-racista.

Porém, foi o manifesto de parcela de intelectuais contra os projetos de lei que reservam as cotas nas universidades para negros e indígenas e o Estatuto de Igualdade Racial que criou as condições políticas para que a consciência anti-racista nacional, para além da, em geral, solitária militância negra, viesse a se manifestar com a contundência que a iniciativa dos proponentes do manifesto contra os projetos de lei exigia. Esses signatários, tratados como “notáveis da vida pública brasileira”, deram com seu manifesto uma carteirada no Congresso e na sociedade civil, que defendem as ações afirmativas para negros e índios. Demasiadamente convencidos de sua importância pública, esperavam com esse gesto que os defensores das políticas inclusivas voltassem para o seu “devido lugar”, intimidados pela notabilidade que se lhes atribuem e pela cobertura midiática que lhes foi assegurada.

No entanto, ao se arvorarem em arautos de uma República em que a igualdade para negros e índios vem se constituindo numa abstração que não encontra contrapartida no real, estimularam que viesse à luz o amplo e diversificado apoio que essas políticas têm hoje em nossa sociedade. Convocaram a consciência cidadã para o inevitável repúdio à prepotência daqueles que se sentem investidos do direito de decretar o que deve ser a nação brasileira, à margem ou de costas para a sua dinâmica real. Obrigaram-na a se diferenciar em relação a um manifesto que se compraz em reconhecer as desigualdades raciais sem ofertar uma única idéia factível para a sua reversão. Distinguiu aqueles que se tornaram “especialistas” em negro por diletantismo acadêmico, daqueles que consideram que “trabalhar com questões inerentes à condição humana é assumir um compromisso, e, em especial, no caso da pesquisa educacional, estabelecer premissas metodológicas claras: a melhoria das condições básicas de vida do sujeito da pesquisa é a finalidade da busca do conhecimento, não só como indivíduo, mas também como partícipe de uma coletividade social” (Roseli Fischmann,1994).

Fizeram emergir, assim, em tempo recorde de reação, outro manifesto agregando as de fato notáveis vozes anti-racistas da sociedade brasileira, irmanando acadêmicos, juristas, movimentos sociais, organizações não-governamentais em defesa dessas políticas que conformam hoje um anti-racismo inédito, ativo, de negros, brancos, indígenas, pessoas de toda origem étnica e religiosa que não se satisfazem mais com condenações retóricas às práticas discriminatórias; ao contrário, exigem ações efetivas para o seu combate e para a inclusão racial. Encastelados em seus privilégios, nas suas torres de marfim, habituados a enxergar o país a partir de teorias e de princípios abstratos, não perceberam o movimento atual da sociedade e não previram a reação digna e superior dos segmentos anti-racistas.

Contam com parcelas da mídia que os apoiam – cujas posições alguns representam – para esconder os milhares de nomes, notáveis e anônimos, que se posicionam a favor das políticas de inclusão racial. Contam com ela também para garantir a veiculação privilegiada de suas posições. Esperam, com isso, sufocar a emergência desse outro país que está sendo forjado nas lutas cidadãs, por novos sujeitos políticos e por renovadas posições acadêmicas. É essa nova dinâmica social que os signatários do manifesto contrário às políticas racialmente inclusivas pretendem conter e, como estão na contramão da história, terminam por acirrar.

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