Uma comitiva de lideranças negras atravessou o Atlântico e aportou na COP 26 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), em Glasgow, na Escócia, que terminou no dia 12 de novembro, fazendo um movimento único de ressignificação da história quilombola. A comitiva conseguiu, pela primeira vez em 26 anos de existência da conferência, colocar na agenda algo que por décadas foi ignorado: o racismo ambiental como fator intrinsicamente ligado à crise climática. Afinal, o enfretamento por proteção ambiental no Brasil é feito diariamente pelas comunidades negras e indígenas.
Portanto, de braços dados com as populações indígenas, a comitiva do movimento negro realizou algumas ações efetivas para tirar do papel o conceito do racismo ambiental, termo cunhado pelo norte-americano Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr, que o descrevia como “a discriminação racial no direcionamento deliberado de comunidades étnicas e minoritárias para exposição a locais e instalações de resíduos tóxicos e perigosos, juntamente com a exclusão sistemática de minorias na formulação, aplicação e remediação de políticas ambientais”.
Os direitos constitucionalmente assegurados aos remanescentes das comunidades de quilombos no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) foram disseminados em um giro por essa comissão pelo Velho Mundo. Na Escócia (durante a COP 26), na Espanha e na Alemanha, debateu-se que a proteção das comunidades quilombolas, por meio da titulação de suas terras, significa diretamente a equivalência de preservação da identidade nacional e das áreas de proteção ambiental, uma vez que são as comunidades tradicionais (indígenas e quilombolas) as maiores cuidadoras desses territórios. O que parece óbvio nunca foi pauta dos tomadores de decisões (leia-se as autoridades brancas).
“Éramos quatro quilombolas representando 16 milhões em 6.300 comunidades no Brasil. Trouxemos o coração, as pernas e a boca deste povo que sofre e luta para que seus direitos sejam reconhecidos. Desses 16 milhões, muitos estão nos campos, nas cidades, nas favelas”, disse à reportagem do Geledés Kátia dos Santos Penha, agricultora e defensora de Direitos da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).
Vergonhosamente, o governo federal omitiu durante a COP 26 os dados escandalosos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), divulgados apenas nesta quinta feira 18, sobre a área desmatada na Amazônia entre agosto de 2020 e julho de 2021: 13.235 km², o maior índice registrado pelo órgão desde 2006. Bom ressaltar que a elevada taxa de desmatamento está em desacordo com as promessas apresentadas pelo Brasil na COP26.
A Amazônia é a maior floresta tropical do mundo, com grande potencial para reduzir os efeitos da crise climática, dada sua capacidade de reter carbono, mas não é só sobre a Amazônia que os quilombolas foram falar. Como bem ressaltaram os mesmos, o atual governo brasileiro tem constantemente violado leis e códigos ambientais e o resultado prático disso tem sido o aumento do desmatamento em todos os biomas do País, das florestas na Amazônia, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, até os incêndios devastadores no Pantanal. Isso sem dizer que as regiões a serem atingidas pelo aumento das temperaturas das águas e suas consequentes inundações serão justamente onde moram as populações pobres e pretas no País. É só prestar atenção nas populações que vivem em palafitas.
Além de Kátia, estiveram na comitiva a agricultora Sandra Pereira Braga, o estudante Cleiton Lucas Vale da Purificação, o engenheiro agrônomo Hilton Lucas Gonçalves Durão, todos da CONAQ, o professor e historiador Douglas Belchior, da Uneafro Brasil e Coalização Negra por Direitos, Eliete Paraguassu, ativista quilombola e líder comunitária da Ilha de Maré, em Salvador e Thais Santos, química e cofundadora da Comunidade Cultural Quilombaque e coordenadora de núcleo da Uneafro Brasil.
Uma das importantes inciativas desta comitiva acima foi participar durante a COP26 de uma reunião com governadores brasileiros no momento em que eles lançavam o comitê pelo clima, colocando a demarcação indígena e a titulação dos territórios quilombolas como temáticas imprescindíveis para os avanços das conversações pela preservação ambiental.
São várias as questões que envolvem os quilombolas, como bem pontua Kátia ao Geledés. “Em nenhum momento somos consultados. As queimadas, as retiradas das árvores, em tudo somos impactados”, diz ela. “A crise climática tem interferência em nosso modo de vida, no plantio, na segurança alimentar. E ainda tem a questão dos agrotóxicos e as doenças”, completa Sandra Pereira Braga, da CONAQ.
Entre as temáticas abordadas na conferência e fora dela estão os impactos das construções de usinas hidrelétricas (Belo Monte, Jirau, Tucuruí e o Complexo Teles Pires) e a violação do direito à consulta e o direito à terra dos povos tradicionais e originários. “Hidrelétricas estão causando impactos sociais, ambientais e econômicos e, mesmo assim, são falsamente retratadas como energia limpa e uma solução para a crise climática. Indígenas e quilombolas brasileiros, cujos modos de vida são diretamente impactados por estes empreendimentos, contarão suas histórias – desde as ameaças sofridas por seus povos até as soluções em energia limpa, inovadora e sustentável encontradas em suas comunidades”, destacou Sandra Braga.
Durante a COP 26, no dia 5 de novembro, a Coalizão Negra por Direitos apresentou um manifesto com a exigência da titulação de terras quilombolas para o alcance da meta de zero desmatamento e o fim do racismo ambiental no Brasil. O texto indica a destruição pelo fogo nos diferentes biomas brasileiros como fator para a maior vulnerabilidade dos povos tradicionais nos territórios.
“As ações criminosas se somam às queimadas legais e ilegais em escalas expressivas nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste, impactando nos territórios dos povos e comunidades tradicionais. Assim como, historicamente, são as regiões onde mais ativistas de direitos humanos, indígenas, quilombolas e ambientalistas na luta em defesa das terras, das águas, das florestas e dos territórios são assassinados”, sublinha o documento.
Entre as ações criminosas, está o derramamento de quantidades gigantescas de agrotóxicos com uso de aeronaves sobre a floresta amazônica. Segundo reportagem da Agência Pública e Repórter Brasil, publicada no dia 16 de novembro, em dez anos foram despejados agrotóxicos em 30 mil hectares nesta área que corresponde a 30 mil campos de futebol.
QUILOMBOLAS NO STAND BRASILEIRO
Um segundo momento em Glasgow foi a comitiva fazer parte do stand organizado por representantes da sociedade brasileira, em uma marcação histórica, porque nos anos anteriores eram os Estados que tinham um stand na conferência, em uma demonstração de unidade entre governo e sociedade civil. Mas este ano, com a ruptura entre governo federal e a sociedade civil, não foi possível todos estarem abrigados no mesmo stand, conferindo maior espaço de escuta e representatividade aos movimentos sociais.
Daqui para frente, o futuro do planeta, antes tema enclausurado em salas de reuniões com governos, setor privado, e ONGs, não poderá mais ser debatido sem a presença dos povos originários. Se a crise climática é humanitária e tem impacto sobre as comunidades quilombolas de nosso País, seus moradores não podem mais ser ignorados por esta agenda. “A participação quilombola foi muito boa. Os jovens quilombolas fizeram parte da marcha liderada pela ativista Greta Thunberg, depois participamos da marcha maior no sábado, na qual tivemos fala ao lado das representações do mundo inteiro”, conclui Douglas Belchior, da Coalizão Negra por Direitos.
De volta ao Brasil, Belchior destaca ainda ao Geledés outros resultados colhidos na ronda europeia pós-Glasgow, onde a comitiva se reuniu com o vereador negro escocês, Graham Campbell, e outros parlamentares europeus. “Em Paris, a gente teve uma conversa com a vereadora francesa Geneviève Garrigos, que além de se colocar publicamente a favor das populações quilombolas, ainda abriu a possibilidade de fazer parcerias da prefeitura parisiense com o movimento negro brasileiro. Eles têm um programa de preservação de fontes de águas e alguns quilombolas têm essa preocupação. Além de uma possível parceria na formação de jovens”, conta ele.
GIRO PELA EUROPA
Douglas Belchior relata também que um grupo da comitiva seguiu de Paris para Munique, na Alemanha, enquanto outro desembarcou em Madri, na Espanha. “Nestes locais foram construídas agendas com os descendentes da diáspora africana que vivem lá, além de um diálogo estabelecido, com articulação da deputada brasileira que vive em Madri, Maria Dantas, com parlamentares espanhóis dos principais partidos do governo da Espanha. Saímos de lá com o compromisso de que estes parlamentares espanhóis se manifestariam publicamente, em apoio a nossa moção relacionada às questões quilombolas”, diz.
Na Alemanha, a comitiva viu espaço para que haja pressão do novo governo alemão sobre o Fundo da Amazônia, do qual a Alemanha faz parte, para que este seja acionado por organizações do movimento negro, como organizações quilombolas e ribeirinhas, pescadores e marisqueiros. Houve ainda um compromisso de pressionar o governo brasileiro para que respeite as diretrizes da Convenção OIT 169, um instrumento de proteção dos direitos dos povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signatário. “Foi muito positiva esta agenda, porque levamos o conhecimento a políticos, organizações e sociedades de que há 6 mil territórios quilombolas no País”, arremata Belchior.
As iniciativas desta viagem ao continente europeu certamente facilitará esta pressão. Até 2030, o Brasil precisa concluir 1.486 processos de titulação territorial quilombola nas regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste, abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), para regularização fundiária pelo Governo Federal e/ou Estaduais (INCRA, 2019).
QUILOMBOLAS NOS EUA
A ação dos quilombolas no protagonismo internacional nem sempre é reconhecida, apesar de se dar há décadas. Tome-se o exemplo das 800 famílias quilombolas de Alcântara, no Maranhão, que devido ao projeto de expansão do Centro Espacial, com pretensão de uso da base exclusivamente pelos Estados Unidos, estão sendo ameaçadas de expulsão de seus territórios.
No dia 19 de outubro, a mídia brasileira divulgou a decisão do Senado norte-americano em vetar uso de dinheiro do governo dos EUA para remoção das comunidades quilombolas de Alcântara. O veto passou a integrar o orçamento fiscal de 2022 do governo norte-americano, que ainda será discutido. Mas antes de qualquer comemoração é preciso explicar alguns fatores sobre esta decisão. O primeiro é que a medida veio de um longo processo gestado no berço das próprias comunidades quilombolas de Alcântara.
O segundo é que a decisão não impede o governo brasileiro em avançar com o projeto de expulsão territorial, mesmo em desobediência à Constituição e à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, como bem explica ao Geledés o cientista político Danilo Serejo, liderança quilombola e representante do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE).
“A decisão desta comissão do Senado americano sinaliza a posição dos Estados Unidos que é a de não se comprometer efetivamente com eventuais remoções de comunidades em Alcântara. Essa é uma decisão que não resolve do ponto de vista do governo brasileiro, porque ela não impede que o governo realize remanejamentos destas comunidades. Então isso nos mantém em alerta, com os olhos bem abertos, para acompanhar os desdobramentos e também para ver quais serão os futuros passos nesta incidência internacional”, diz Danilo.
Danilo Serejo enxerga que as questões quilombolas tomaram uma proporção internacional, o que ajuda a pressionar o governo federal. “Por outro lado, acho que essa é uma questão que também sinaliza para que o Brasil, em suas parcerias internacionais, seja qual for o país, assuma o compromisso de que não é mais possível avançar nessa lógica falida de remanejamento das comunidades indígenas e quilombolas. Este veto, neste sentido é muito representativo. Não é possível avançar sem respeitar os direitos destas comunidades”, conclui.
Seja como for, a carta enviada ao Congresso americano em 2019 foi fruto de um processo coletivo ao ser pensada e elaborada pelas organizações quilombolas de Alcântara e subscrita por quase 50 entidades da sociedade civil, do movimento negro, e de pessoas ligadas ao sistema de justiça. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, começa-se a entender que para além da preservação ambiental, a proteção das comunidades originárias e de seus descendentes, através da titulação de seus territórios, é parte do processo de preservação da própria identidade brasileira e tudo o que a ela compete. Viva Zumbi! Viva a herança de Palmares!